De um exílio não se regressa, ele é a nossa terra
exausta, a
nossa palavra exausta, a nossa escrita exausta.
:
Um homem pobre nunca será um exilado:
encontrará em todos os caminhos
a devastação da sua intimidade.
Rui Nunes
![]() |
Pormenor do Jardim da Alameda (Faro) por Adília César |
Vejamos. Para muita gente, as inevitáveis
férias chegaram (o mês de agosto devia escrever-se sempre com maiúscula, tal é
a enormidade da linha assimptota que o caracteriza). Inspiro profundamente até
ao fundo do mar. Volto atrás e leio o que acabei de escrever. Depois daquela
estranha afirmação entre parêntesis não me apetece dizer mais nada. Ultimamente,
os parêntesis ganharam novos contornos na minha vida, com nuances caóticas e
efervescentes, nem sempre por causa do calor. O planeta Terra entrou em fase de
ebulição e o meu espírito está em perfeita sintonia magmática, com pensamentos secos
e esfarelados que, depois do fogo, vão encobrindo algumas dúvidas existenciais
relacionadas com as alterações climáticas, a inteligência artificial, enfim, a
espuma de uma vida tão difícil de dissipar para tantas pessoas.
Vejamos. Proponho-me escrever uma crónica
(ou, na pior das hipóteses, uma não-crónica). Contudo, sei que um texto dessa
natureza – uma espécie de história contada de modo linear – deve conter um
número mínimo de palavras (sei lá, por exemplo, 700) e, assim, farei um esforço
para deixar registado algo interessante sobre a silly season (desculpem-me
o estrangeirismo, mas a tradução não funciona bem, tendo em conta as minhas
intenções narrativas).
Vejamos. Estive a ler… Bem, na verdade creio
que não vos interessa o que eu estive a ler. Nem sequer onde eu irei passar as
minhas férias. E muito menos interessará o que é que eu penso sobre o verão.
Mas as 700 palavras ainda estão longe e…
Vejamos. Recomecemos. Estive a ler o
último livro do escritor Rui Nunes, um autor que sigo há muito tempo. O homem
escreve de uma forma demolidora, em completa ruptura com as tradições
narrativas a que vou tendo acesso como leitora. Fascinante. A editora que
publicou a maioria dos seus livros – a Relógio D’Água – classifica-os na
categoria Poesia. Certo. “Neve, Cão e Lava” e as respectivas aproximações
assimptóticas, segundo o autor. Talvez poesia, sim.
Vejamos. Nesta crónica, definir se a obra
de Rui Nunes se encaixa numa categoria poética não é relevante, pois não
pretendo traçar um perfil do escritor em causa. Da epígrafe que seleccionei,
ressalta quase tudo o que me apraz dizer sobre o meu tema de eleição – o verão.
Estou de férias, mas não aprecio partilhar territórios veranis com os outros.
Sou uma espécie de exilada no meu próprio país, porque se me atrevo a sair
encontrarei, decerto, “em todos os caminhos, a devastação da sua [minha]
intimidade”. Deste modo, faço uma aproximação assimptota aos paraísos comuns
daquilo que se convenciona como sendo férias e refugiu-me nos meus paraísos
interiores: eu, tu, os pássaros que cantam junto à janela, a frescura do jardim
que ambos frequentamos diariamente, os livros e as percepções decorrentes de
todos os acontecimentos que parecem não se relacionar com o que acontece aos
outros. A terra exausta, a palavra exausta, a escrita exausta. Ou quase.
Vejamos. Ainda agora o tempo da
expectativa paradisíaca começou e já me sinto exausta… assimptoticamente,
aproximo-me das 700 palavras, mas…. o dicionário Priberam vem em meu auxílio e
vejo claramente “a linha recta que se dispõe em relação à ramificação infinita
de uma curva, de modo a que a distância de um ponto da curva a esta recta tende
para zero quando o ponto se afasta indefinidamente sobre a curva.”
Vejamos. É verão e o tempo ferve, o tempo
não pára de ferver. Derreteu a neve metafórica, definitivamente. Fez desaparecer
a frescura da manhã. Parece que o tempo tem pressa de viver, como os turistas. Assim
é o verão para mim: uma onda complexa, que não cabe, que não coincide, que não
se toca. Assimptota. Um calendário desfeito pelo calor da lava que não se vê,
mas que sabemos que está ali, a explodir durante o mês de agosto. O cão é
grande e negro, olha-nos confiante e deita-se na relva, a nossos pés. O tempo
parece ameno, aproximando-se em câmara lenta.
Vejamos. Será tudo isto apenas um sonho?
Respiro pesadamente e decido acordar do torpor quente da noite. Sorrio,
confiante como aquele cão que ainda está deitado sobre a relva, mas que eu já
não consigo alcançar na tela do horizonte. Afinal, é dos sonhos arriscados que
reza a história dos audazes. Na mesa de cabeceira, o livro do Rui Nunes é o que
é: um lugar onde o já e o ainda quase coincidem.
Finalmente, já atingi as 700 palavras! Pois
então, basta de intenções literárias por hoje. Amanhã ainda será agosto,
assimptoticamente falando. Sinto-me febril, tenho que me tratar. Escrever é uma
doença.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_398
Sem comentários:
Enviar um comentário