sexta-feira, 4 de agosto de 2023

ASSIMPTOTICAMENTE

 

De um exílio não se regressa, ele é a nossa terra exausta, a

nossa palavra exausta, a nossa escrita exausta.

:

Um homem pobre nunca será um exilado:

encontrará em todos os caminhos

a devastação da sua intimidade.

 

Rui Nunes


Pormenor do Jardim da Alameda (Faro) por Adília César
 

     Vejamos. Para muita gente, as inevitáveis férias chegaram (o mês de agosto devia escrever-se sempre com maiúscula, tal é a enormidade da linha assimptota que o caracteriza). Inspiro profundamente até ao fundo do mar. Volto atrás e leio o que acabei de escrever. Depois daquela estranha afirmação entre parêntesis não me apetece dizer mais nada. Ultimamente, os parêntesis ganharam novos contornos na minha vida, com nuances caóticas e efervescentes, nem sempre por causa do calor. O planeta Terra entrou em fase de ebulição e o meu espírito está em perfeita sintonia magmática, com pensamentos secos e esfarelados que, depois do fogo, vão encobrindo algumas dúvidas existenciais relacionadas com as alterações climáticas, a inteligência artificial, enfim, a espuma de uma vida tão difícil de dissipar para tantas pessoas.

     Vejamos. Proponho-me escrever uma crónica (ou, na pior das hipóteses, uma não-crónica). Contudo, sei que um texto dessa natureza – uma espécie de história contada de modo linear – deve conter um número mínimo de palavras (sei lá, por exemplo, 700) e, assim, farei um esforço para deixar registado algo interessante sobre a silly season (desculpem-me o estrangeirismo, mas a tradução não funciona bem, tendo em conta as minhas intenções narrativas).

     Vejamos. Estive a ler… Bem, na verdade creio que não vos interessa o que eu estive a ler. Nem sequer onde eu irei passar as minhas férias. E muito menos interessará o que é que eu penso sobre o verão. Mas as 700 palavras ainda estão longe e…

     Vejamos. Recomecemos. Estive a ler o último livro do escritor Rui Nunes, um autor que sigo há muito tempo. O homem escreve de uma forma demolidora, em completa ruptura com as tradições narrativas a que vou tendo acesso como leitora. Fascinante. A editora que publicou a maioria dos seus livros – a Relógio D’Água – classifica-os na categoria Poesia. Certo. “Neve, Cão e Lava” e as respectivas aproximações assimptóticas, segundo o autor. Talvez poesia, sim.

     Vejamos. Nesta crónica, definir se a obra de Rui Nunes se encaixa numa categoria poética não é relevante, pois não pretendo traçar um perfil do escritor em causa. Da epígrafe que seleccionei, ressalta quase tudo o que me apraz dizer sobre o meu tema de eleição – o verão. Estou de férias, mas não aprecio partilhar territórios veranis com os outros. Sou uma espécie de exilada no meu próprio país, porque se me atrevo a sair encontrarei, decerto, “em todos os caminhos, a devastação da sua [minha] intimidade”. Deste modo, faço uma aproximação assimptota aos paraísos comuns daquilo que se convenciona como sendo férias e refugiu-me nos meus paraísos interiores: eu, tu, os pássaros que cantam junto à janela, a frescura do jardim que ambos frequentamos diariamente, os livros e as percepções decorrentes de todos os acontecimentos que parecem não se relacionar com o que acontece aos outros. A terra exausta, a palavra exausta, a escrita exausta. Ou quase.

     Vejamos. Ainda agora o tempo da expectativa paradisíaca começou e já me sinto exausta… assimptoticamente, aproximo-me das 700 palavras, mas…. o dicionário Priberam vem em meu auxílio e vejo claramente “a linha recta que se dispõe em relação à ramificação infinita de uma curva, de modo a que a distância de um ponto da curva a esta recta tende para zero quando o ponto se afasta indefinidamente sobre a curva.”

     Vejamos. É verão e o tempo ferve, o tempo não pára de ferver. Derreteu a neve metafórica, definitivamente. Fez desaparecer a frescura da manhã. Parece que o tempo tem pressa de viver, como os turistas. Assim é o verão para mim: uma onda complexa, que não cabe, que não coincide, que não se toca. Assimptota. Um calendário desfeito pelo calor da lava que não se vê, mas que sabemos que está ali, a explodir durante o mês de agosto. O cão é grande e negro, olha-nos confiante e deita-se na relva, a nossos pés. O tempo parece ameno, aproximando-se em câmara lenta.

     Vejamos. Será tudo isto apenas um sonho? Respiro pesadamente e decido acordar do torpor quente da noite. Sorrio, confiante como aquele cão que ainda está deitado sobre a relva, mas que eu já não consigo alcançar na tela do horizonte. Afinal, é dos sonhos arriscados que reza a história dos audazes. Na mesa de cabeceira, o livro do Rui Nunes é o que é: um lugar onde o já e o ainda quase coincidem.

     Finalmente, já atingi as 700 palavras! Pois então, basta de intenções literárias por hoje. Amanhã ainda será agosto, assimptoticamente falando. Sinto-me febril, tenho que me tratar. Escrever é uma doença.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_398

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