sábado, 12 de agosto de 2023

A SEGUIR À PRIMAVERA VEM O VERÃO

"S’il n'était pas mort il ferait envie",

(Se ele não estivesse morto, faria inveja)

 

In “La Mort de La Palisse”*,

canção militar em honra do Marechal de La Palisse



     A seguir à primavera vem o verão. Bem sei, dito assim desta maneira óbvia, é uma afirmação sem interesse, assemelhando-se a uma das ditas verdades de la palisse, tão abundantes nos discursos tanto das pessoas simples como das complexas. Ah, meu caro Jacques de La Palisse, meu corajoso Marechal de França que morreste na Batalha de Pavia!... Em honra das tuas conquistas e subsequente popularidade cantaram-se glórias dignas de memória! E tantas vezes se cantaram as afamadas cantigas que estas sofreram subtis transformações, sendo a mais célebre a seguinte, por ter dado um novo e definitivo sentido ao teu nome:

"s'il n'était pas mort il (ƒerait – serait) en vie"

(se ele não estivesse morto faria/estaria vivo)

      Com a sua existência e morte aprendemos que é lícito enunciarmos evidências e truísmos que toda a gente compreende. Existe, portanto, um mundo antes de La Palisse e outro, completamente diferente, depois de La Palisse: eis 1525 – o ano zero da argumentação, por assim dizer. Então, vamos a isto, às lapalissadas da vida contemporânea!

     É importante repetir que esta estação do ano a que demos o nome próprio de Verão surge todos os anos a seguir à primavera, para me convencer da efervescência que me aguarda, sem piedade nem salvação. É um inferno mascarado de paraíso e Socorro é o seu nome do meio (para conhecerem o apelido desta entidade de calendário terão de ler a minha crónica até ao fim). Na verdade, podia limitar-me a usufruir do descanso, vestir roupa leve, beber água fresca, sair apenas à noite depois do sol desaparecer, ler livros atrás de livros, ver televisão, e dormir, dormir muito para não sentir o calor a dobrar o ar. Podia tentar queimar a época veranil com atividades mais ou menos inócuas, mas isso não seria viver a vida, sabendo também que o tempo que passa não volta mais (olha, que giro, começaram as lapalissadas). O que posso então fazer para justificar a minha existência face à recorrência desta estação do ano da qual não posso fugir?

     Para mim, o verão está ligado a morte: por exemplo, as pessoas morrem afogadas ou em acidentes de viação com mais frequência do que noutras épocas do ano; as barragens baixam assustadoramente o seu nível de água; a erva, outrora verde e apetecível transforma-se em pasto seco, com serventia apenas para alimentar os incêndios; ai, que medo, os incêndios, incêndios a arder por todo o lado, que horror. Resta o mar: o mar azul que reflecte o azul do céu, o céu azul que reflecte o azul do mar. Bolas, mais outra redundância.

     Tenho que ter cuidado. Não tarda, estou a cair num buraco linguístico perigoso com um nome de peste contagiosa: a tautologia. Parece que tudo o que afirmo é uma falácia, nada acrescentando ao que já foi dito antes. A minha argumentação não apresenta saídas à sua própria lógica interna. Em favor da minha débil capacidade de raciocínio, tenho a dizer em minha defesa que a culpa é do verão! Tenho que ter cuidado, tudo o que está a mais sobra. Bolas, mais outra lapalissada!  

     Este texto adoeceu, está contaminado pelos pleonasmos do quotidiano. Estou muito preocupada. Subo para cima e desço para baixo as escadas da minha casa, sem parar; encontro uma porta que não conhecia e entro para dentro; assusto-me com o escuro da minha mente e saio para fora à procura de um consenso geral, de uma regra concreta para me tornar a protagonista principal antes do amanhecer do dia. Mas só me acontece a lembrança de um passado, apenas um único embora dividido em duas metades iguais, cheias de detalhes minuciosos que procuro encarar de frente para retornar de novo àquela expectativa futura, e repetir outra vez a retrospectiva passada, para poder planear antecipadamente a última versão definitiva da minha argumentação sobre este verão que veio a seguir à primavera. Pelo caminho, abro um parêntesis, pois descobri o nome completo desta malfadada estação do ano: Verão Socorro de La Palisse. É um bom pseudónimo de escritor, não vos parece?

     Para não perder o fio à meada, registo o óbvio: tudo o que escrevi nestas páginas está carregado de lapalissadas, tautologias, redundâncias, pleonasmos. Funcionam assim como os batuques aleatórios no tambor: pum, catrapum, pum. Uma chatice. É difícil falar ou escrever sem estas figuras de retórica. Como decerto sabemos, o pleonasmo é uma doença linguística e, deste modo, o melhor seria apagar tudo, mas… “o que escrevi, escrevi” (a frase entre aspas está atribuída a Pôncio Pilatos, mas a expressão veio mesmo a calhar e não resisti a usá-la). E agora, o que resta? Tenho uma ideia. Para salvar esta crónica vou deixar-vos alguns pleonasmos literários, inteligentes, ditos por criadores de qualidade artística indiscutível. Atenção, não são vícios de linguagem, mas sim pleonasmos literários:

     “O cadáver de um defunto morto que já faleceu” (Roberto Gómez Bolaños);

     “E rir meu riso” (Vinicius de Moraes).

     É isso mesmo, Vinicius, deixemos de lado a tenebrosidade da morte, por enquanto, e aproveitemos o verão para pôr o riso em dia. Rir o meu riso, rir de mim própria – gosto disso.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_399

Nota da autora: as expressões consideradas como lapalissadas, redundâncias e pleonasmos foram deliberadamente escritas em itálico, uma vez que não tenho tambor para batucar.

*Canção “La Mort de La Palisse” (séc. XVIII)

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