sábado, 1 de janeiro de 2022

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [29] por Adília César

Tão profusa, e complicada, e tumultuária, e rápida se tem tornado a vida moderna que, se os seus factos dominantes não fossem flagrantemente apanhados em imagens concretas, e fixados em resumos límpidos, nós teríamos sempre a aflitiva sensação de irmos levados num confuso e pardacento redemoinho de ruído e poeira.


Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Dreams" - Arte fotográfica digital de Robert Jahns

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EU NUNCA

estive realmente aqui. Viajo no tempo, observo o que me chama a atenção, mas não permaneço por muito tempo num lugar onde sou invisível. Depois esqueço, literalmente. A memória habita os meandros mais improváveis e dissimulados. A inquietação amplia os limites do eco reverberado até ao infinito. Eco. Eco. Eco. Tudo é ruído, tudo se transforma em poeira adiada para o futuro. E, e, e, e… há sempre alguém que acrescenta mais qualquer coisa ao que foi dito e redito. É um castigo para a civilização, esta inutilidade de tantas palavras que são ditas e reditas. Que fazer com os discursos repetidos do passado que infectam o presente?

 

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O CAMINHO

a subir nem sempre tem o caminho a descer. Com alguma fantasia especulativa é possível, facilmente, construir um sistema filosófico que fique por ali a espreguiçar sobre o senso comum das pessoas. É possível e… tentador. Veja-se, por exemplo, a proliferação de lamuriantes aforismos que povoam as redes sociais e que se propagam como um vírus de vestimenta vistosa, mas que, na verdade, são completamente inúteis e até contraproducentes. Há alguma máscara que nos proteja de tal demagogia? Este som de não dizer nada…

 

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HÁ PALAVRAS

que deviam deixar de existir, como “talvez” ou “vice-versa”, porque não servem para nada. Felizmente, também há palavras que parecem usar coroas nas suas cabeças, como “não” e “sim”, porque quando são ditas fazem toda a diferença. Há palavras que deviam ser inventadas, como “auaá”, perfeitas para utilização em espelho (“áaua”, estão a ver?) porque poderão servir para quase tudo, até para entender o significado profundo da vida: olhar para o espelho e ver por dentro de nós, estão a perceber? Não? Por agora, ficamos assim. Na verdade, a minha tese tem uma importância relativa.

 

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NAVEGO

na rede social e deparo-me com… bem, não vou descrever o indescritível. Quer dizer, tenho um discurso ensaiado com as adequadas palavras descritoras, mas não tenho a certeza se terão o poder de contrariar o imenso tédio que, entretanto, me invadiu. Porque me permiti entrar no palácio do invisitável? O dia ficou arruinado, digo.

 

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PERMITE-TE DISCORDAR,

diz a mãe. Escuto-a com atenção e dou-me conta de que o seu sistema filosófico se construiu tendo como alicerces os seus próprios sonhos, martírios e contemplações pensativas. As paredes da casa cada vez mais apertadas em redor da mãe. Permite-te discordar, insiste ela, ao deparar-se com o meu silêncio. Na crítica, “o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança”! Lembras-te daquela canção – “Pedra Filosofal”? Lembro-me muito bem: tem letra de António Gedeão e música de Manuel Freire. A canção, no seu todo, constitui-se como um sistema filosófico complexo, embora entendido pelas pessoas simples. Inesquecível. Pura. Intemporal. Sou invadida por uma espécie de felicidade estética, ao trautear a canção. Mas creio que a mãe está confusa, pois a canção fala do sonho e não da crítica… Ó filha, francamente, então os teus sonhos são iguais aos meus?! “Permite-te discordar”, ou seja, sonha o que nunca ninguém sonhou antes. Janeiro é o tempo dos sonhos novos. Não há dias arruinados! Fica atenta: chegou um ano novo, um mês novo, um dia novo. Permite-te discordar, critica, constrói um pensamento só teu. Esse é o teu contributo, é a tua pedra filosofal. Escreve e lê-me o que escreves.

 

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NÃO SEI

se conseguirei libertar-me deste “pardacento redemoinho” enquanto procuro, incessantemente, as “imagens concretas” de que preciso para não me deixar levar para alguma parte obscura de mim mesma, aquela pele de alma abismal, aquela longínqua face do pensamento amordaçado, anestesiado. O meu entusiasmo é, portanto, comedido. Anseio pelo “resumo límpido” dos factos da vida, anseio pela pessoa verdadeira que sou e que apenas se intui. Anseio pelo som de dizer qualquer coisa fundamental, a utopia da vertigem criativa, a enumeração exaustiva dos contrafactuais da existência humana. Ano Novo, discurso velho. E se?...


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_321


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