quinta-feira, 18 de abril de 2019

UM AMOR NO MEIO DAS COUVES


A Dona Rufina tem oitenta e seis anos. Uma vida pacata, um casamento de mais de seis décadas, dois filhos homens e quatro netos rapazes. No seio deste universo masculino, uma mulher pode sentir que há segredos que têm de ficar guardados para sempre. E assim foi até ao dia em que a fui visitar. O marido abriu-me a porta e encaminhou-me até ao quintal, onde ela me esperava junto de um bonito tabuleiro preenchido com o lanche destinado às visitas: chá de camomila e biscoitos de aveia. Vou dar uma voltinha, agora que ela já está acompanhada. E o marido saiu da casa e da história misteriosa.

Ainda bem que vieste, tenho uma história para te contar. Era sobre ela e o Senhor Jorge, o vizinho de toda uma vida. Isto dura há demasiado tempo, disse a Dona Rufina, tenho de contar a alguém e só uma mulher serena como tu me poderá entender. Sabes, sinto que vai acontecer qualquer coisa muito em breve. Há uma fraqueza que me puxa para debaixo da terra.

uma rosa é uma rosa é uma rosa

Contou-me que o Senhor Jorge se deslocava até à sua pequena quinta uma vez por semana, ao sábado, trabalhando arduamente ao sol a cuidar da horta e do jardim. Era essa ida ao campo que organizava o seu ritmo de vida. De volta à casa citadina, o banho quente entorpecia as dores do corpo e era chegada a hora de cumprir o ritual do amor feito à pressa, à noite, perto daquela hora em que a noite não sabia se ainda era sábado ou se já seria domingo. Ele passava bem sem isso, mas a mulher perguntava se ele queria, era o seu dever de esposa. Ele dizia que sim, era o seu dever de esposo, e o prazer que sentia até era confortável, funcional, um acto quase solidário, durante o qual ele esvaziava o pensamento e se concentrava na tarefa da intimidade utilitária. A ansiedade de sábado antecedia os acontecimentos significativos de domingo e permanecia nas entranhas. Na verdade, era uma boa sensação, a culminar frequentemente no alívio daquele prazer marcado no calendário, como uma espécie de troféu para compensar o mau estar contido na recorrência de um mesmo pensamento, a coisa amada do outro lado da rua, no dia seguinte. O tempo que quase deixa acontecer.

Tudo girava em torno do ciclo domingueiro. Desde a missa matinal, o almoço com a família, o único brandy consentido durante toda a semana. E a limpeza do exterior da casa e do quintal. O calor morno e macio do crepúsculo adivinhava a ansiedade que ele já sentia, quando se dirigia ao canteiro para compor as trouxas de couves destinadas aos familiares que esperavam a hora de ir para as suas casas. Cinco molhos de couves, um por cada dedo da única mão que conhecia, a mão que colocava uma rosa vermelha colhida no seu jardim, dentro de um molho de couves especial, o que tinha o sabor e o perfume do amor. A personificação da delicadeza.

Depois, a calma era devolvida ao espaço da casa, a mulher a varrer e a lavar o chão durante pelo menos um quarto de hora. Um quarto de hora, em que o dia não sabia se ainda era tarde ou se já seria noite, o tempo suspenso, à espera daquele momento. Do outro lado da rua, a Dona Rufina aparecia à janela. A postura segura e direita do corpo a evidenciar uma segurança contrariada pelos olhos e pelas mãos. Os olhos tão brilhantes, quase lacrimosos da emoção e as mãos ternas, ainda vazias, a segurarem a ansiedade da dádiva dele, que agora caminhava até ao seu encontro. E eis chegado o momento do verdadeiro acto de amor, a oferenda de um viçoso molho de folhas de couve, onde se escondia, bem no meio, um botão de rosa, carmim e transgressor, denso como o ar que se custava a respirar, a ansiedade a embrulhar o afecto, a sedução a aceitar a beleza de um momento sempre único, o ritual edificado entre as mãos dele e as mãos dela, entre os olhares embebidos pelo brilho do sentimento. Um botão de rosa, dois corações tão vivos. Nem uma palavra, nenhum toque. Apenas o ritual da passagem, a energia da possibilidade de um sonho, a dádiva e as palavras que não precisam ser ditas. O tempo que quase deixa acontecer, mas não deixa acontecer, durante mais de sessenta anos.

Depois de eu morrer, podes contar a quem quiseres. Mas ninguém vai acreditar, não é? E deu uma gargalhada jovial perante o meu silêncio cauteloso.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 133
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_20informativo_20_23133

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