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Lua de Marfim, 2016 |
quis olhar
para dentro da manhã
como nunca me
tinha visto antes
um devoto
caminho na placidez dos passos
silêncio
andante na promessa de ir sem voltar
- porque gritam
os pássaros
se a água
insiste em salpicar as suas asas?
é madrugada e
o sol há de chegar confiante
por entre
certezas de sombras sinceras
a tecer os
grãos de areia que guiam os pés caminhantes
mil passos e
ainda tão longe de mim
tão
inatingível o destino por amanhecer
como se a
urgência da noite teimasse em ficar
a esconder o
brilho sedutor do espelho de água
onde se
revela a beleza do que é ínfimo e eterno
- porque
morrem as conchas
se a maré se
esquece de acordar?
nos olhos
lavados dos peixes, o desgosto entorpecido
renasce na
simetria das escamas corajosas
a dimensão
breve do recobro das horas repetitivas
dormência do
tempo que falta até chegar
incertezas a
doer no cântico das pedras soltas
no vacilar do
toque tímido dos dedos às veredas infinitas
a respiração
a devolver a vida às coisas inertes
em sintonia
cálida e sincera
- porque
sonham as borboletas
se o vento
desfalece nos arbustos?
camarinhas
brancas e doces numa pose paciente
acalmam o
remoinho da momentânea melancolia
como se a
vertigem do último degrau
oferecesse o
voo das gaivotas às nuvens dançantes
a madrugada
apregoa saudades à nascente do dia
a frescura da
brisa revela novos modos de adivinhar árvores
a mudar a cor
do que antes era cinzento
- porque
choram as estevas
se o sol atende pelo único nome que conhece?
a luz é
sempre uma promessa de sorrisos
quando o ar
se veste de sons, de improvisos macios
todo este céu
a caber numa gota de silêncio puro
música
intermitente da respiração das coisas
como as
velhas tábuas dos barcos em terra
a viajarem
tardiamente no declive das algas
- porque
sussurram as formigas
se a terra
não gosta de surpresas?
nos
precipícios cansados do meu corpo
abandono a
inutilidade visceral do sangue
e guardo o
paraíso interior que nasce subitamente
na fina pele
do ruído do pensamento que se cala num êxtase
sei agora que chegarei ao centro de mim
ainda que os
olhos fechados me digam a demora de uma vida
dissimulada
pelas incertezas dos que desistem de caminhar
Adília César, in o que se ergue do fogo, Lua de Marfim, 2016
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