quarta-feira, 17 de abril de 2019

POEMA DOS PASSOS

Lua de Marfim, 2016


quis olhar para dentro da manhã
como nunca me tinha visto antes
um devoto caminho na placidez dos passos
silêncio andante na promessa de ir sem voltar

- porque gritam os pássaros
se a água insiste em salpicar as suas asas?

é madrugada e o sol há de chegar confiante
por entre certezas de sombras sinceras
a tecer os grãos de areia que guiam os pés caminhantes

mil passos e ainda tão longe de mim
tão inatingível o destino por amanhecer
como se a urgência da noite teimasse em ficar
a esconder o brilho sedutor do espelho de água
onde se revela a beleza do que é ínfimo e eterno

- porque morrem as conchas
se a maré se esquece de acordar?

nos olhos lavados dos peixes, o desgosto entorpecido
renasce na simetria das escamas corajosas
a dimensão breve do recobro das horas repetitivas
dormência do tempo que falta até chegar
incertezas a doer no cântico das pedras soltas
no vacilar do toque tímido dos dedos às veredas infinitas
a respiração a devolver a vida às coisas inertes
em sintonia cálida e sincera

- porque sonham as borboletas
se o vento desfalece nos arbustos?

camarinhas brancas e doces numa pose paciente
acalmam o remoinho da momentânea melancolia
como se a vertigem do último degrau
oferecesse o voo das gaivotas às nuvens dançantes

a madrugada apregoa saudades à nascente do dia
a frescura da brisa revela novos modos de adivinhar árvores
a mudar a cor do que antes era cinzento

- porque choram as estevas
 se o sol atende pelo único nome que conhece?

a luz é sempre uma promessa de sorrisos
quando o ar se veste de sons, de improvisos macios
todo este céu a caber numa gota de silêncio puro
música intermitente da respiração das coisas
como as velhas tábuas dos barcos em terra
a viajarem tardiamente no declive das algas

- porque sussurram as formigas
se a terra não gosta de surpresas?

nos precipícios cansados do meu corpo
abandono a inutilidade visceral do sangue
e guardo o paraíso interior que nasce subitamente
na fina pele do ruído do pensamento que se cala num êxtase
sei  agora que chegarei ao centro de mim
ainda que os olhos fechados me digam a demora de uma vida
dissimulada pelas incertezas dos que desistem de caminhar

Adília César, in o que se ergue do fogo, Lua de Marfim, 2016

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