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Foto de Adília César, Faro |
Sei o que fizeste. Com a devida
antecipação, a bruma das férias envolveu-te delicadamente e estacionou em todos
os teus poros. Assinalaste os dias no calendário do mês de agosto, pesquisaste ilhas
paradisíacas da Ria Formosa e horários de ferrys. Compraste um novo fato de
banho, rosa choque, provavelmente influenciada pelo filme da Barbie. Leste com
atenção o teste de bronzeadores e protectores solares, realizado pela Deco
Proteste; costumas optar pela Escolha Acertada, mas desta vez resolveste subir
a parada, em correlação directa com as tuas expectativas de férias, e
adquiriste o Melhor do Teste: Piz Buin Tan & Protect Tan Intensifyng Sun
Spray 30 SPF – para uma pele perfeita. Entretanto, as férias acabaram. Desta
vez esmeraste-te: que comportamento tão original, esse de morar no Algarve e
não ir à praia…
Sei o que fizeste. Emergiste do fundo da
fonte, como uma sereia. A tua mítica personagem destoava apenas nas barbas
brancas. Quer dizer, barbas brancas numa sereia é um pouco inusitado, mas
veem-se coisas piores quando saímos à rua. Ainda ontem vi no Jardim da Alameda
um homem muito musculado vestido de saia e blusa de alças, abanando-se
freneticamente. Andou de um lado para o outro e depois perguntou para quem o
quis ouvir, num tom vocal grave de barítono: “estão a rir de quê?” E foi-se
embora de rompante, tal como tinha chegado. Uma espécie de sereia dos jardins,
a bem dizer. Sedutora e confiante, tal como eu imaginaria a Musa das Três Fontes
Secas, caso ela existisse.
Sei o que fizeste. O Festival F chamou por
ti. Ou melhor dizendo, cantou para ti. Não sabias a que palco havias de te dirigir,
mas seguiste a multidão eufórica que subitamente se ramificava e logo de
seguida parecia diluir-se noutra massa humana, como uma geografia ondulante própria
dos lugares do entretenimento. É uma alegoria repetitiva, como os discos
riscados que tocam indefinidamente o mesmo fragmento musical. Os espectadores têm
copos na mão e bebem líquidos coloridos que lubrificam veias e artérias. Ficam
coloridos por dentro e pálidos por fora. Tu és alérgica ao álcool e bebes Coca
Cola, comprada a muito custo depois de uma longa espera em fila, com pessoas
coladas umas às outras como as lagartas do pinheiro. Tens sede e bebes três
golos em três tempos num modo automático de sucessão rápida, numa tentativa de
te adaptares à grande engrenagem de gente alegre e excitada. Sentes-te uma peça
da frenética máquina de consumo que alimenta a sociedade do espectáculo. Arrotas.
Que falta de educação. Já não tens idade para arrotar em público.
Sei o que fizeste. Tomaste uma decisão e passaste da teoria à prática. Há atitudes drásticas que são perfeitamente compreensíveis, porque as aves fazem o que querem. Voam por cima dos muros e vedações do jardim e atravessam a estrada. Pousam nas varandas do prédio. Vocalizam o seu é-ó tão característico a qualquer hora do dia e da noite. Ora essa, as pessoas que moram nas redondezas não gostam de ser incomodadas por aquele ruído animalesco e dissonante. As pessoas preferiam que as aves tivessem um interruptor – switch on switch off – para se ligar e desligar o pupilar dos pavões, permitindo-lhes atividade vocal apenas durante as horas consideradas adequadas. No abrigo, a pavoa quer chocar os seus oito ovos, mas tu destróis sete, deixando-lhe apenas um filho único. Com alguma sorte, crescerá saudável e belo, tal como os seus irmãos e irmãs seriam. Afinal, já há muitos pavões e pavoas no jardim, a incomodar as pessoas nas suas residências pagas mês após mês, a tanto custo, com taxas de juro inacreditáveis. Não é admissível que essas pessoas sejam incomodadas pelas magníficas aves que habitam aquele lugar desde o século passado. Aquele chão, aquelas árvores mais antigas que qualquer um de nós: esse “absoluto que pertence à terra” (diz Hermann Broch). A pavoa olha o que fizeste, incrédula e serena, sabendo que tem uma tarefa a cumprir: chocar o ovo do seu filhote. O pavão, nada subtil, solta um é-ó bem sonoro, como de costume, e voa para longe. O tratador apanha uma mão cheia de penas que os pavões deixam cair pelo chão e oferece-as ao turista que se aproximou da porta do abrigo, trocando-as por algumas moedas. Ao fim do dia conseguiste ir até à praia e deste um mergulho no mar que é da cor das penas dos pavões que nunca iriam nascer. Sentiste a tristeza da concha vazia que se afunda para sempre. Mudam-se os tempos, ou melhor dizendo, as penas, e não se mudam as vontades. Os tempos… esses são de miséria humana. Ah Camões, se tu visses com o teu olho o que eu tenho visto com os meus dois olhos...
É verão. Acontecem estes e outros
deslizamentos de terras, incêndios, inundações, guerras. É verão e os fantasmas
dos verões anteriores chamam por ti, enquanto secam as três fontes do jardim e
morrem os pavões. Há areia a corromper a engrenagem humana. Tudo muda, menos a
tua sonolência veranil. É quase noite, mas ainda será uma noite de verão: é-ó,
a terra arde, é melhor chamar os Bombeiros.
Adília Cesar, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_401