domingo, 26 de março de 2023

PERFIL - ANTÓNIO RAMOS ROSA E MANUEL MADEIRA

 A confidencialidade deliberada


… quando a breve luz se apaga,

resta uma eterna noite para dormir.

 

Caio Valério Catulo (84 a.C. - 54 a.C.)

 

António Ramos Rosa e Manuel Madeira (capa da 1ª edição, Ed. Labirinto, 2001)

   

     Os poetas também morrem. Mas enquanto a breve luz das suas vidas não se apaga, antes da eterna noite, convocam interrogações e profecias através da simbiose entre realidade e palavra poética. António e Manuel.

     António Ramos Rosa nasceu em 1924, em Faro. Em 1962 muda-se para Lisboa, onde foi professor e tradutor, até que se dedicou inteiramente à poesia. A sua intensa actividade poética, crítica e ensaística disseminou-se em projectos editoriais como as revistas de poesia Árvore, Cassiopeia e Cadernos do Meio-Dia (de que foi co-director juntamente com Casimiro de Brito), bem como em diversos jornais e revistas e distinguido com vários prémios nacionais e internacionais. A partir de 1980, inicia o desenho de rostos e outros traços não figurativos, realizando algumas exposições individuais em galerias portuguesas. Morreu em 2013.

     Manuel Madeira nasceu em 1924 em São Bartolomeu de Messines, mas muito cedo foi viver para Faro e depois para Olhão, onde esteve até aos vinte e cinco anos de idade. A seguir, deslocou-se para Lisboa e por lá ficou cerca de quarenta anos. Foi funcionário público, tendo sido demitido por motivos políticos, preso e torturado pela PIDE. Trabalhou como técnico de indústria agro-alimentar durante três décadas. Regressou a Olhão. Colaborou com poesia e ensaio em publicações clandestinas de divulgação cultural no Algarve, nos anos quarenta e posteriormente em jornais e revistas literárias do país. Foi co-fundador da revista literária SOL XXI. Está considerado como um antifascista da Resistência. Faleceu em 2016.

     Cartas Poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira é um livro que não pode ser esquecido. É um livro que precisa ser estudado, por um lado, para entendermos a grandiosidade do género poesia epistolar, pouco valorizado hoje em dia e, por outro, para conhecermos estes dois homens: pessoas, poetas, seres humanos de excelência. Nas cartas que escreveram um ao outro, António e Manuel foram leitores de si mesmos, implicados numa atitude testemunhal. Nestas missivas poéticas, deram-se a conhecer e mostraram o mundo contextualizado nos seus problemas do quotidiano: lugares da infância e da adolescência, intenções, ideologias partilhadas. Ideias, visões, sentimentos. Claridades. Ritmos existenciais. Se cada poeta é a verdade da sua própria poesia, estas cartas-poema prepararam caminhos a outros poetas que se seguiram. É esse o seu valor intrínseco.

       António, o simbólico constante.

       Manuel, o guerreiro da transfiguração da palavra.

     António e Manuel escreveram-se durante muitos anos. Este livro reúne 134 cartas (1ª edição, Editora Labirinto, 2009), (Edição revista e aumentada, 4Águas Editora, 2014). Um e outro, um com o outro: o eu e o tu no que “a epistolografia pode exprimir, o que implica necessariamente a condição intersubjectiva do discurso, o conhecimento da própria criação, a comunidade e a comunhão dos sujeitos no horizonte da expressão poética. E o testemunho pressupõe a fidelidade como princípio na contínua relação transformadora do sujeito com os outros.” (do Prefácio à edição da 4Águas Editora, por Varela Pires).

 

Primeira carta a Manuel Madeira (p.15):

 

O que é uma casa, o que é a minha casa

onde o vento germina ou não germina

com o odor da humidade da terra?

O que é estar aqui neste âmbito limitado

meu querido amigo Manuel,

será que nele pulsa a reminiscência de aventuras passadas,

a nostalgia da ingénua adolescência,

será que ela é uma habitação, uma estância, uma ondulante saudade

de não se sabe o quê, talvez de um charco

onde crianças colhíamos fugidios girinos

(…)

 

Primeira carta a António Ramos Rosa (p.17):

 

Como se uma golfada azul de sol entrasse pelas frinchas

forçasse os gonzos ferrugentos e abrisse a porta

desta obscura casa onde guardo as relíquias

de um passado vivo todavia enevoado

sujeito como está ao furor das intempéries

às chuvas outonais aos indomáveis ventos

que sopram nos invernos da desolação

derrubando estacas promontórios raízes

- a tua carta meu querido amigo António

entrou de rompante com passos de arminho

neste espaço sombrio onde o bolor invadiu as soturnas paredes

com teias de aranha suspensas do tecto

iluminou os desvãos acordou o silêncio

da voz enternecida que dir-se-ia morta

despertou o torpor do sono empedernido

e estilhaçou em pedaços a rigidez da ausência

(…)

     Os poetas nunca morrem. António e Manuel vivem numa casa onde o silêncio acordou.


in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_379

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