sábado, 30 de outubro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [24] por Adília César

 

Ora o júri da Academia parece também pensar que livros de viagens, odes, comédias, dramas em verso, romances arqueológicos – tudo são coisas em letra redonda.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Poética Orgânica - Hugo França

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FIZ UMA VIAGEM

pelos dias acima e encontrei o passado. Não foi o tempo remoto, oblíquo, consignado a um ponto de fuga dos acontecimentos. Não foi o tempo da memória ofuscada. Pelo contrário, esse tempo era um dia muito presente, fresco, inalterado, tal como as pequenas fontes de movimentação circular e contínua que nunca secam nem mudam de lugar. Por exemplo: uma fotografia numa página de jornal: uma legenda que queremos ler à pressa: ou apenas um certo fastio.

 

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OS PRÉMIOS

literários dão que falar e, portanto, todos dão a sua opinião – merecido, não merecido, nem por isso. Eu não tenho opinião. Como poderia ousar um pensamento de admiração, inveja, desagrado ou indiferença por algo que desconheço? Resta-me a curiosidade. O que significa ser o melhor livro a concurso? Nada, muito? Ocorre-me uma ideia obstinada e omnipresente que me parece verdadeira, no sentido em que a seta não erra o alvo: aquele livro foi considerado o melhor livro a concurso, tendo em conta os critérios daquele júri específico. Ah… é isso: o mistério está desvendado.

 

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AS ACADEMIAS

literárias proliferam. Umas, ad aeternum, robustas como rainhas velhas. Outras, viçosas e inofensivas como cabritinhos. A maior parte delas – as rainhas – erguem altos muros de alvenaria em seu redor e só lá entra quem possui a palavra-passe. Uma proeza de engenharia corporativa. O grupo de iluminados e o novo candidato – aos saltinhos para se mostrar, como belo cabritinho que é, – testemunham o mesmo incómodo: Portugal é um país de escritores. E agora? Resta um belo cozido à portuguesa para enfardar, porque nada disto se pode comer cru.

 

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É TAMBÉM VERDADE

que os escritores portugueses têm alguma vantagem, ainda que frágil, em relação aos escritores do resto do mundo: escrevem numa língua que pouca gente escreve e pouca gente lê e, assim, a concorrência é aceitável. Contudo, no seio deste marasmo manso das palavras portuguesas, a concorrência é desleal. Tenho provas irrefutáveis de que o sucesso não persegue os melhores escritores, mas são mistérios com muitas pontas soltas que, afinal, não seria justo revelar. Creio que até seria perigoso para a minha integridade física – ou será que quero dizer integridade literária?... Bem, prefiro escrever poesia porque não aprecio as poses dos cabritinhos e o som dos seus badalos. «Não é a poesia um pouco isso, esse vigor de um maestro que, em vez de mandar este ou aquele músico tocar, é o maestro que antes manda calar?» (António Franco Alexandre, entrevista ao Jornal i de 28/10/2021).

 

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A LETRA REDONDA

obriga-nos à utilização de uma visão periférica. Tomar consciência daquele pedaço de mundo escrito, visualizar a página e ter coragem para prosseguir. É um caminho de silvas, de rosas com espinhos. E ninguém se cala… O ruído invade o livro e protagoniza demónios. E, todavia, adoro os meus demónios feitos de letras redondas. Um dia, hei-de escrever um poema concentrado num ponto universal, feito apenas dos dias de silêncio, para recuperar da futilidade das palavras.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_313

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