sábado, 16 de outubro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [23] por Adília César

Essa cousa tão maravilhosa, de um mecanismo tão delicado, chamada ‘o indivíduo’, desapareceu; e começaram a mover-se as multidões, governadas por um instinto, por um interesse ou por um entusiasmo.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Grafiti na cidade de Faro - Autor desconhecido

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GOSTARIA

de pensar que a espécie humana está a evoluir, mas quase tudo o que me rodeia diz-me precisamente o contrário. Não creio, contudo, que seja mero pessimismo da minha parte. Na verdade, a existência humana teve sempre como palco a ambição, o caos, a necessidade intrínseca de pertença a um qualquer grupo. Este movimento instintivo de actores impreparados implicou comportamentos excessivos, irreais.

 

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A MULTIDÃO

parece ter-se tornado o sujeito da democracia. E o interesse superior do indivíduo, se não desapareceu já, tornou-se desconfortável para a maioria, como a transparência ameaçadora da alforreca ainda viva.

 

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“ESTUDAR

onde é bom viver” é o slogan escolhido pela Universidade do Algarve para angariar alunos para os seus cursos superiores, exibido em alguns outdoors da cidade de Faro. Faro é igual a tantas outras localidades portuguesas de dimensão similar: alguma alegria natural, muita degradação; um grande entusiasmo pela praia, uma fraca adesão à cultura; e, todavia, alguma esperança, a par de uma grande descrença no futuro.

 

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A SEMANA ACADÉMICA

é um dos maiores constrangimentos da cidade; as quintas-feiras de arraial universitário, também provocam o mesmo asco nos cidadãos. O comportamento dos jovens, nestas alturas, é difícil de descrever: alguma alegria natural, muita degradação; um grande entusiasmo pela praia, uma fraca adesão à cultura; e, todavia, existe alguma esperança, a par de uma grande descrença no futuro. E assim vamos andando.

 

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RECORDO

quando soube que iria ser criada uma universidade em Faro: foi em 1979. A dinâmica estudantil era ainda tímida, embora com tendência a crescer, como veio a acontecer. Aqui estudei, orgulhosamente. Hoje em dia, lamento que a própria universidade compactue com os actos ignóbeis dos estudantes universitários actuais: praxes, vandalismo, noites ruidosas e incomodativas. Não creio que a liberdade desses jovens passe pelo estorvo que me causam, que nos causam. Não creio que as autoridades não possam proteger os habitantes da cidade. Não creio que seja admissível que o Magnífico Reitor nada possa fazer para minimizar os estragos.

 

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ESTUDAR

onde é bom viver? Para quem? Se os comportamentos dos estudantes universitários são tolerados porque são considerados indivíduos com necessidades emocionais e sociais de pertença à matilha (assim o justificam os psicólogos), os outros parecem ser meros copos de angústia, receptáculos impotentes da incivilidade universitária.

 

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É DIFÍCIL

acreditar que aqueles mesmos jovens vão ser um dia os dirigentes da nação. É difícil aceitar que aqueles mesmos jovens continuarão a invocar a liberdade e a democracia como apanágio da sua própria estupidez. Que desperdício de capital humano. Ou apenas: que desperdício.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_311

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