sábado, 31 de julho de 2021
Vídeo O POÉTICO COMO ABERRAÇÃO - ANTÓNIO GANCHO E O AR DA MANHÃ
DOBRA DE PENSAMENTO 15: O poético como aberração | 10º RAIAS POÉTICAS
Evento online
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sexta-feira, 30 de julho de 2021
NOTAS CONTEMPORÂNEAS [20] por Adília César
Eça de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra
póstuma)
*
FECHO
os
olhos, e o pensamento acende-se. A luz desliza pela coluna vertebral e
espalha-se pelos órgãos internos, como uma sensação de dor a preencher as
células. A pele fica às escuras. Fecho os olhos. Abdico de todos os episódios
de transtorno, essas sombras de intensidade ainda média. Fecho os olhos, mas
qualquer semelhança com a noite é pura coincidência.
*
ACORDO
às
08:38. Não é a primeira vez que isto acontece. Acredito que toda a organização
do universo se baseia na elaboração de uma estrutura matemática, através de um
padrão repetitivo, sem erro nem desvio. O meu corpo acorda às 08:38. É domingo.
Não tenho a certeza se existe alguma obrigatoriedade de funções para o dia de
hoje: talvez ficar na cama e dormir, mas decido acordar o espírito. Começo a
ler um livro escolhido ao acaso. Leio epígrafes sem consequências. O livro é
desinteressante e abandono a leitura. Não tenho forças para escolher outro, e
adormeço. São 09:00.
*
OS
DESVIOS
foram
inventados pelos humanos – as estradas de cimento ao longo da terra; os
apartamentos sobrepostos sobre o lugar de ninguém; as barragens a impedirem o
movimento dos caudais que antes eram livres; as pontes entre margens perdidas
no horizonte. E as máscaras de contenção da doença. Sejamos práticos: afinal,
já não somos humanos, transformámo-nos em “seres potencialmente pandémicos”. Temos
sucesso em todos os domínios de destruição e o nosso mantra é consumir e apagar
todas as pistas de arrependimento; dizer adeus ao futuro é o novo lema.
*
OS
ESPECIALISTAS
trabalham
por turnos. Cada um tem a sua teoria e cada teoria tem o seu contrário. Este
processo dialéctico desenvolve-se ao longo de um período de tempo
pré-determinado. Às vezes, vão trabalhar todos ao mesmo tempo. Logo, os especialistas
não se entendem, não coordenam os seus tempos de antena e confundem os
espectadores. Criticam-se mutuamente e invalidam teorias que acabam por
nidificar no caos informativo. O que resta?
*
FAÇO
DE CONTA
que
a tolerância é um valor a ser resgatado ao lixo ético a que me vou habituando.
Sou tolerante em relação às atitudes dos outros e que ganho eu com isso? Sou
tolerante com a corrupção, a demagogia e a restrição velada dos meus direitos? Sou
tolerante em relação aos sintomas paradoxais das notícias? Não, não posso ser
tolerante: «Às vezes, é preciso desobedecer.» (Salgueiro Maia)
*
ACREDITAR
em
contos de fadas pode ser fatal. O Lobo Mau anda por aí. A Bruxa Malvada está à
espreita. O Dragão insiste no fogo pelo fogo. E a Fada Madrinha é uma espécie
em vias de extinção. O que resta? De repente, o Príncipe Encantado surge numa
esquina do dia, a trautear uma canção requisitada nos termos de serviços
mínimos, tendo em conta a evolução da espécie humana: É o Fungagá/ Fungagá
da Bicharada/ É o Fungagá/ Fungagá da Bicharada!
Não
– é a palavra mágica.
Criticar
– é o verbo sábio para acolher o livre arbítrio. Porque haveria de querer a
barbárie de “regressar à normalidade”?! Porque haveria de me sujeitar às
mentiras de outrora?
*
EU
QUERO
é
ser feliz, de dentro para fora. Ser outra vez humana no avesso das coisas. Ser
humana como nunca fui antes. Acordo às 08:38. Ainda é domingo? Apetece-me
criticar abertamente os objectos do meu desprezo, mas hesito e nego o impulso,
por agora. «No catálogo dos direitos humanos não existe o direito
a não ser ofendido; se existisse, ninguém poderia dizer ou escrever uma palavra.»
(Salman Rushdie)
E
calo-me. Por agora. São 09:00. O tempo que passou tentou demitir-me das minhas
funções, mas não conseguiu.
O
que resta? Tenho a resposta na ponta da língua: sei o que não quero.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_300
NOTAS CONTEMPORÂNEAS [19] por Adília César
Eça de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra
póstuma)
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Zeus |
*
ZEUS,
é
o deus supremo dos céus e dos trovões. Deus dos deuses e dos homens. Pobre
Zeus. Deve estar louco, perdido nesta cacofonia universal. Ele é um ajuntador
de nuvens, um organizador do mundo. Mas a nuvem, carregada de sarcasmo humano,
tenta fugir-lhe a todo o custo: de cá para lá e de lá para cá, as nuvens, todas
ao mesmo tempo. Troçam da intencionalidade bélica de Zeus e riem-se nas bátegas
de chuva que despejam sobre as nossas cabeças. Imagino a cena: Zeus-pai a
ralhar com as crianças-nuvens, ele predisposto à tempestade e elas destinadas à
execução do seu próprio fracasso. Acredito que as nuvens não queiram ser deusas,
mas a tormenta surge, imponente, desabando sobre o mundo dos homens e dos
deuses: a tempestade, acto de Zeus.
*
A
CENA
poderia
ter sido pintada por Jonh Constable, um outro “pai” universal. «Hoje vou pintar
as nuvens por cima deste mar», diz ele. Elas mudam a cada instante e por isso,
ele pinta o mais rápido que lhe é possível. O sol, ténue e fragmentado. Raios
de luz mansa. Mas tudo muda, tudo muda. O que aí vem é uma perturbação da
natureza. O céu, o sol, a chuva, o vento, a luz, o frio, as nuvens. Tudo muda.
O vento gélido transforma as tintas numa pasta grossa agarrada aos pincéis. É
difícil a missão do pintor. A narrativa da natureza coincide com a expressão
sincera de respeito pela paisagem: nuvens que dançam, cinzentos abstractos, o
branco que parece afogar-se neste céu tão pesado. Ele sabe que lhe é permitido
este jogo de repetição: as nuvens que vê hoje já não são as mesmas que viu
ontem ou que verá amanhã, mas em cada dia há um quadro que nasce, uma nova
visão da evanescência de outras visões. Afinal, ele é humano. Ó tempestade.
*
DE
SÉCULO EM SÉCULO
vamos
ostentando a vaidade com menor ou maior prejuízo para a nossa imagem. Adaptamo-nos.
Cosemo-la nos botões das fatiotas, enlaçamo-la na écharpe sobre os ombros,
prendemo-la na gravata à volta do pescoço e os braços tornam-se desagradavelmente
compridos com o peso dos anéis, das pulseiras e dos relógios. Nas algibeiras, o
dinheiro não serve para nada e vai caindo pelos buraquinhos tecidos pelas
nossas ambições materiais. Nas estantes, os livros fazem parte de uma história
interminável que ninguém irá ler. Onde está o erro?
*
HOJE
vi
Zeus. Estava ali ao meu alcance. Era parecido com o fazedor de tormentas
pintadas por Constable. Mas tudo muda, tudo muda. Está mais magro, parece velho
e doente, contaminado pelas fraquezas humanas e pelo calor do verão. A gravata
aperta-lhe o pescoço e não o deixa respirar. As nuvens espreitam, ansiosas.
Querem brincar às escondidas, mas só sabem chover consolações apressadas de
última hora. E Zeus chora, o peito sacudido por longas filas de espera. À
espera de quê? Nunca saberemos. Este é um segredo bem guardado pelos deuses.
*
AINDA
HOJE
se
perceberá que a pena se torna mais pesada quando não se sabe escolher as
palavras certas. Por exemplo: o poema é “bonito”; o verso é “magnífico”; a obra
é “extraordinária”; o livro é “profundo”. E agora, o que se faz com esta
presunção? Posto isto, tenho a certeza que a pena é qualquer coisa
difícil de caracterizar, ao demorar-me por um período de tempo considerável
sobre esta matéria dos elogios adjetivados até à exaustão. Ainda hoje se
perceberá que tudo isto não passa de um móvel de prateleiras esconsas a abrir e
a fechar num discurso de fachada: agradecer e retribuir para continuar a
usufruir como uma espécie de favores em cadeia, mas sem generosidade genuína.
*
QUE
PENA…
Afinal,
a pena é tão leve que não deixará marca. Mas Zeus tem agora melhor aspecto: o
meu ténue sarcasmo engordou-o um pouco, corou-lhe as faces. Gosto de o ver
assim, reclinado na poltrona, a ler um livro de poesia. E diz, divertido, com o
olhar sábio lançado sobre o horizonte, como se falasse com alguém que não está
ali: “o crítico literário e o seu editor podem ajudá-lo a deixar de escrever.
Consulte-os”. Zeus solta uma rude gargalhada que se ouve até aos confins do
universo e zomba desta espécie de mazela humana: as más escolhas.
Constable
aparece e começa a pintar a estranheza do verbo elogiar. E tudo muda, tudo muda
na alegoria.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_298