As cinco tiras de papel ali estão sobre a mesa,
lívidas, irónicas, vazias:
e é necessário enchê-las todas, de alto a baixo,
com coisas extraídas do nosso interior.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
s/título, por Cruzeiro Seixas (1920-2020)
*
A
ORIGEM
implica
todas as percepções relativas aos acontecimentos. Não é possível queimar
etapas. Volto atrás para compreender como tudo começou. Um flashback –
como se diz em português? – um flechebeque, pois, um regresso, um retorno, um
retrocesso. Súbito de luz que não se apaga.
*
A MINHA MÃE
foi durante muito tempo uma leitora assídua da biblioteca
municipal da cidade onde vive há mais de 60 anos. Ultimamente, o seu ritmo de
leitura era de cerca de três livros por semana. Alguns problemas degenerativos
de visão vieram impedir essas horas diárias de felicidade e assim, quando
posso, ofereço-lhe não só o livro, como antes, mas também tempo de leitura em
voz alta. Ao ler poesia para a minha mãe dei-me conta de uma intimidade única,
muito nossa, na experiência de leitura e de comunicação sentimental - amor,
solidariedade e fruição estética. Na verdade, é muito comovente. Já me têm
perguntado para que serve a poesia: não sei, talvez sirva para recriar o meu
cordão umbilical com aquela mulher espantosa que me deu a sua e a minha vida
inteira. Hoje, dei-lhe uma hora do meu tempo. Quanto tempo tem uma hora?
*
é
uma miragem dos sonhos quando o tempo não dá tempo para olhar o passado e nos
obriga a aceitar que o fluído temporal não é um horóscopo de filtros cor de
rosa. Outras cores tingem a espuma dos dias. Perante o desconhecido, fugimos
dos acontecimentos como se nos desviássemos daquelas pequenas ondas de um mar
de outono. Frio, sombrio, perturbador, mas ainda não fatal. E caminhamos
enquanto nos sugam a energia e a paciência.
*
e
o lobo estão em cena no mesmo plano ficcional. A ovelhinha existe porque o lobo
a deseja. O lobo existe porque a ovelhinha o deseja. Mas ela tem medo. E ele gosta que ela tenha medo. A ovelhinha não
sabe que pode saltar para as costas do predador. Não sabe que tem tempo, muito
tempo, para aprender a dar o salto até àquele lugar que se chama lonjura, longe
dos dentes afiados que lhe rasgam a voz.
"A
lonjura não existe", diz a ovelhinha.
"O
eco de uma existência banal é silencioso", responde o predador.
E
ambos se calam para sempre. O silêncio da morte é tão concreto como a vida que
o antecedeu. O vencedor será sempre a voz que conta a fábula.
*
é
um verbo decadente. Nas mil páginas escritas pelos outros, de acumulação
coerciva do discurso, lanço a ousadia do escárnio. Rir é o melhor remédio. Rir
dos sentires das almas bafejadas pela inspiração divina ao encherem cinco
páginas de coisa nenhuma. O silêncio é dizer o nada, porque tudo já foi dito, noutros
silêncios, com outras linguagens. E ninguém entendeu.
*
DE
REPENTE
alguém
rompe o seu espírito e derrama naquele lugar o pensamento, a loucura, o suor, a
utopia, a pretensão. O seu corpo é um prolongamento da razão e emoção,
concretizadas, de algum modo muito particular e original, na obra de arte. A
mão que se impõe é a própria vida e a possibilidade criativa no presente
projecta o imaginário numa memória futura: este é o artista. Um dia, o
imaginário do espectador será preenchido pela estética do criador. No momento
dessa compreensão entramos livremente num universo desconhecido, de olhos
fechados, inundados de luz: esse quarto escuro onde brincamos com o corpo todo.
*
E
SE
embrulhássemos bagos de uva em papelinhos de rebuçados? As uvas recriam um travo doce na nossa língua amargurada. De tão amarga. E por fim, ainda não será o fim.
Parabéns pela escrita lúcida neste palco de humanidades em metamorfose.
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