sábado, 14 de novembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [5] por Adília César


As cinco tiras de papel ali estão sobre a mesa, lívidas, irónicas, vazias:

e é necessário enchê-las todas, de alto a baixo,

com coisas extraídas do nosso interior.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

s/título, por Cruzeiro Seixas (1920-2020)

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A ORIGEM

implica todas as percepções relativas aos acontecimentos. Não é possível queimar etapas. Volto atrás para compreender como tudo começou. Um flashback – como se diz em português? – um flechebeque, pois, um regresso, um retorno, um retrocesso. Súbito de luz que não se apaga.

 

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A MINHA MÃE

foi durante muito tempo uma leitora assídua da biblioteca municipal da cidade onde vive há mais de 60 anos. Ultimamente, o seu ritmo de leitura era de cerca de três livros por semana. Alguns problemas degenerativos de visão vieram impedir essas horas diárias de felicidade e assim, quando posso, ofereço-lhe não só o livro, como antes, mas também tempo de leitura em voz alta. Ao ler poesia para a minha mãe dei-me conta de uma intimidade única, muito nossa, na experiência de leitura e de comunicação sentimental - amor, solidariedade e fruição estética. Na verdade, é muito comovente. Já me têm perguntado para que serve a poesia: não sei, talvez sirva para recriar o meu cordão umbilical com aquela mulher espantosa que me deu a sua e a minha vida inteira. Hoje, dei-lhe uma hora do meu tempo. Quanto tempo tem uma hora?

 

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 A VIDA

é uma miragem dos sonhos quando o tempo não dá tempo para olhar o passado e nos obriga a aceitar que o fluído temporal não é um horóscopo de filtros cor de rosa. Outras cores tingem a espuma dos dias. Perante o desconhecido, fugimos dos acontecimentos como se nos desviássemos daquelas pequenas ondas de um mar de outono. Frio, sombrio, perturbador, mas ainda não fatal. E caminhamos enquanto nos sugam a energia e a paciência.

 

*

 A OVELHINHA

e o lobo estão em cena no mesmo plano ficcional. A ovelhinha existe porque o lobo a deseja. O lobo existe porque a ovelhinha o deseja. Mas ela tem medo.  E ele gosta que ela tenha medo. A ovelhinha não sabe que pode saltar para as costas do predador. Não sabe que tem tempo, muito tempo, para aprender a dar o salto até àquele lugar que se chama lonjura, longe dos dentes afiados que lhe rasgam a voz.

"A lonjura não existe", diz a ovelhinha.

"O eco de uma existência banal é silencioso", responde o predador.

E ambos se calam para sempre. O silêncio da morte é tão concreto como a vida que o antecedeu. O vencedor será sempre a voz que conta a fábula.

 

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 POETIZAR

é um verbo decadente. Nas mil páginas escritas pelos outros, de acumulação coerciva do discurso, lanço a ousadia do escárnio. Rir é o melhor remédio. Rir dos sentires das almas bafejadas pela inspiração divina ao encherem cinco páginas de coisa nenhuma. O silêncio é dizer o nada, porque tudo já foi dito, noutros silêncios, com outras linguagens. E ninguém entendeu.

 

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DE REPENTE

alguém rompe o seu espírito e derrama naquele lugar o pensamento, a loucura, o suor, a utopia, a pretensão. O seu corpo é um prolongamento da razão e emoção, concretizadas, de algum modo muito particular e original, na obra de arte. A mão que se impõe é a própria vida e a possibilidade criativa no presente projecta o imaginário numa memória futura: este é o artista. Um dia, o imaginário do espectador será preenchido pela estética do criador. No momento dessa compreensão entramos livremente num universo desconhecido, de olhos fechados, inundados de luz: esse quarto escuro onde brincamos com o corpo todo.

 

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E SE

embrulhássemos bagos de uva em papelinhos de rebuçados? As uvas recriam um travo doce na nossa língua amargurada. De tão amarga. E por fim, ainda não será o fim.



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AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA