Adília
César nasceu no século passado, em Lagos, Portugal. Só tem
uma ruga – a da linha de escrita. Se não se chamasse Adília César o seu nome
seria Baudília ou Monadília, e depois de ter descoberto a Área Branca perfeita e imaculada, naturalmente
chamar-se-ia Fiamadília. Adília é singular – o seu ser está na primeira pessoa.
Tem uma voz parecida com os poemas que escreve e ama de olhos bem abertos.
Nunca escreveu uma ode, nem quando está em viagem, mas é capaz de despertar a
Europa num só verso. Adília é o lugar-corpo da poesia com uma agulha
no coração. Está bem acordada durante o dia e não toma Xanax; talvez por
isso o seu lado negro esteja sempre à espreita, em lúcido delirium. Detesta vermes e poluição
sonora. Quando tropeça e cai, levanta-se muito rapidamente para ninguém ver: é o
que se ergue do fogo. Nunca recebeu postais de férias nem telegramas com
notícias amargas. Adília podia ser uma Deusa: tem um discurso sonhador e
escreve poemas contra o tempo o tempo. Desde criança que ela deseja ser uma
Sereia coberta de pérolas, mas a Ria Formosa ainda não lhe fez a vontade. Em
seu redor, o gelo vai derretendo. Adília, essa palavra nocturna e negra. É fundadora da Sociedade dos Espaços
Vazios Entre As Palavras.
sexta-feira, 1 de setembro de 2023
AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA
BOM APETITE!
(Fernando Pessoa, excerto do poema Tabacaria,
1928)
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Foto de Adília César, Faro |
A noite quente entranhava-se na pele e
quase ardia. Ela, a mulher cansada e submersa no tédio, sonhava por dentro do
sonho, sem querer acordar. O cenário parecia desconhecido e surreal, como uma
casa torta ou uma antologia de percepções de medo e inquietação. As paredes
rachadas, o chão inclinado, o tecto absolutamente inacessível. Tropeçava
frequentemente no mesmo sofá atafulhado de panos: lençóis, almofadas, roupa de
homem. Ao fundo do corredor, uma porta feita de ossos. Ela tinha uma respiração
ofegante de quase asfixia. Os dentes rangiam, demonstrando uma raiva contida ao
longo dos dias de férias. De vez em quando, as mãos e os pés pareciam avisar
sobre qualquer coisa prestes a acontecer, um perigo iminente a latejar. O sonho
tão lúcido. A porta de ossos abriu-se lentamente, a ranger, como nos filmes de
terror em que se caminha pelas ruas e se tenta estabelecer conversas
filosóficas com as pessoas sobre os problemas graves que assolam as nossas
vidas. Pode ser um autêntico pesadelo.
No sonho dentro do sonho o tempo regressou
ao fim da tarde do dia anterior. O tempo a fazer o seu trabalho: presente,
passado e sonho. Ela tinha uma perfeita consciência deste momento, único e
intransmissível, e acalmou-se de uma forma pré-estabelecida, como sempre
acontece quando a sensação da realidade não muda, mas ao mesmo tempo é
absolutamente necessário mudá-la. Ou seja, antes da transição para a vigília,
ela teria de encontrar a solução para o seu problema – a presença dele. Ele, o primo
chegado à sua casa no Algarve, há precisamente um mês. Um mês. Todos os anos o
primo telefonava a dizer quando chegava, geralmente com um dia de antecedência.
Chegava e instalava-se no sofá da sala. A casa dela transformava-se num
acampamento de verão. Outra vez.
Mas este era um dia muito especial – o
último dia de férias de ambos (que alívio para ela…). Para assinalar a data, o
primo tinha decidido fazer o jantar, uma perna de perú estufada, mas ela não a
tinha tirado do congelador, para implicar, assim como uma pequena vingança. Ele
não se irritou. Na verdade, nada parecia contribuir para lhe estragar as férias
– aqueles dias todos de agosto passados na praia, a banhos de sol e de mar, com
cama e comida de graça, roupa lavada, duches, aftershave, refrescos e
festas de verão. O primo iniciou os procedimentos necessários ao único gesto de
boa vontade de que era capaz, assim como uma manifestação de agradecimento
pelas maravilhosas férias que a prima lhe tinha proporcionado. Entre
parêntesis, ela pensou que ele podia ter comprado uma perna de cabrito ou
borrego, sempre era mais gourmet, mas enfim, ficou-se pela perna vulgar
de perú talvez para não gastar demasiado: bem sabemos que a vida custa a todos,
principalmente aos primos nortenhos que não gastam um tostão em férias no
Algarve. Ele dispôs todos os ingredientes em cima da pequena
bancada, bem alinhados, como uma linha de montagem. Azeite, cebola, alho, pimentão,
cenoura, louro, sal. E a perna de perú, ainda congelada. De faca em riste, o
primo cortava a cebola e o alho, para fazer o refogado, bem regado com o azeite
e decorado com a cenoura e a folha de louro. Tens a mania que és bom cozinheiro,
pensou ela. Fazes sempre isto, cozinhas pacientemente, sujas a cozinha toda,
para eu depois limpar. O primo falava ininterruptamente e ela fazia de conta
que ouvia, sem responder, deambulando pela cozinha de ossos, enquanto sonhava
tantas e ainda outras maneiras de o calar.
Pitéu. Ele estava sempre a usar esta
palavra. Que palavra horrível. Parecia um esgar de arrogância. Continuava a
falar, explicando pela milésima vez como se cozinhava uma bela perna de perú,
mas nem lhe distinguia as palavras, só via o abrir e o fechar da boca, parecia agora
um peixe fora de água.
Prima, passa-me aí outra cenoura!
Ela levantou-se com alguma dificuldade. Tantas
férias passadas com o primo, ano após ano. Que tédio, que cansaço, que raiva. O
sonho pesava dentro do sonho. Abriu a porta do frigorífico e a frescura
alertou-a para a vida toda que tinha à sua frente, em todos os verões do futuro.
Voltou-se lentamente e viu a perna de perú ainda meio congelada, forte, como
uma arma carregada de possibilidades criminosas. Pegou nela com todas as mãos
de que dispunha – eram mais de mil – e levantou-a no ar, bem alto até à ao
lugar onde os pássaros voam, e aterrou-a na cabeça dele. Uma pancada. O primo
tremeu um pouco como a gelatina no pires, caiu lentamente e ficou dobrado
naquela posição estranha da morte, com os olhos abertos. De seguida, a prima lavou
a perna de perú, colocou-a no tacho e polvilhou-a com um pouco de sal, não
muito, no verão anterior tinha ficado salgada. Ficou a olhar para a carne até
que ficou bem passada, durante duas horas. Depois, apagou o lume, tapou o tacho
e ligou ao 112, para avisar que a sua casa tinha sido palco de um acidente
fatal. Acordou com as sirenes da ambulância e da polícia, com a sensação real
de que este seria o melhor verão da sua vida: aventureiro, misterioso,
sibilino. Dramático. Os olhos abertos do primo diziam exactamente o mesmo. Bom
apetite, primo!
Serenamente, ela, a prima, a mulher
rejuvenescida, abriu a porta às autoridades e reiniciou o sistema de
dependência do tabaco, acendendo o primeiro cigarro da sua vida: na verdade, ela
nunca tinha fumado, mas era completamente viciada em nicotina, naquele sonho
dentro do sonho.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_402