sábado, 4 de fevereiro de 2023

PERFIL - OSWALD DE ANDRADE

Assim como uma explosão lenta de humanidade


Oswald de Andrade (Brasil, 1890-1954)

     A insónia avassaladora, por fim, sucumbia. Tudo tem um fim. Mas antes, os olhos bem abertos na escuridão devoravam a melancolia como faróis no túnel da noite. Ela, a mulher morena, já não estava ali. A porta ficara aberta e ele fechou-a, sem olhar a solidão que teimava em entrar. Outra vez. Mas antes, ela estava ali: a mulher-boneca.      

     Sabes de uma boneca sem almofada nem pedestal. Apenas o perfume da espera, a embrulhar um sorriso perfeito, suspenso no silêncio do quarto. Permanece na comodidade do seu drama, num monólogo subtil da imagem que oferece às paredes. Às vezes, uma sombra. Outras vezes, um brilho. E nunca a respiração. A porta abre-se em ângulo obtuso e o mundo agora é outro, ainda sombrio, mas partidário da emoção do que não aconteceu. Esse é o melhor momento do dia. Quando o quarto cósmico se acende com as estrelas que vêm de longe, só para enfeitar a boneca que se abandona ao destino surreal. Ela sabe o perigo que corre. Não há lugar para as sereias nas camas dos amantes. Não existe imunidade para os pecados amorosos. As pétalas frescas das rosas irão secar, mesmo que a eternidade lhes seja pedida. Apenas o vício amassado e transformado em prazer fácil no quarto quimérico. É só isso que sobra de cada vez que tu sais por aquela porta. Mas depois as estrelas apagam-se no abandono do corpo imóvel. Um sono intranquilo, entrecortado pelas palavras do poema que quer sobreviver. Um sonho animado pelos efeitos especiais de uma boneca viva em pose sedutora. Um auto-retrato celestial de uma boneca outra vez virgem, de cada vez que tu voltares a entrar por aquele quarto. Num outro dia. Um leve pestanejar. Sabes de uma boneca, mas ela não sabe de ti. E foi-se embora. Há outras bonecas que abrem as portas das casas pelo lado de fora. Outras mulheres. Querem descobrir o que está lá dentro. Oswald acreditava em todas elas, bonecas e mulheres. No chão, a passadeira vermelha mostrava uma alegria de fim de mundo, de apocalipse, de amorosa intensidade, mas, principalmente, de inteligência.

     Vejamos: Oswald de Andrade era mais do que este homem. Era um ser capaz de deglutir, engolir a cultura e transformá-la em algo muito próprio e modernista. Desde o início da sua acção cultural, criava polémicas, respondia às provocações surgidas e marcava uma posição em defesa da arte. Nesses textos, questões estéticas relacionadas com questões políticas e sociais, em jornais e revistas da época, permitiram consolidar um espaço de encontro para o nascimento de uma nova estética – o movimento modernista – a partir de 1922. Oswald de Andrade tinha pouco mais de 30 anos de idade.

 

Considera-se um povo pela sua cultura; é a expressão máxima de raça e de momento a obra de arte que resiste ao tempo; passam os politiqueiros, passam os tiranos que andaram de charola, passam os milionários e os agitadores de praça pública, apaga-se a memória dos que foram grandes à força de trombeta – e ficam os artistas. (Oswald de Andrade, Jornal do Commercio, São Paulo, 16 maio 1920)

 

     O homem, o escritor, o pensador, o mestre, proclamava independência artística sobre o caminho da Independência política do Brasil de 1822, frisando que independência não é somente independência política, é acima de tudo independência mental e independência moral. (idem)

     Ter coragem é perseguir a realidade e Oswald sabia que tudo o que fica registado fala com o futuro. Por essa razão e para fazer cumprir o seu propósito, escrevia sem parar. Contudo, o seu optimismo era relutante. A linguagem assume um significado incompreensível e agonizante, o qual recusas. Curar as feridas do pensamento, desvanecer as náuseas da emoção. A gordura derrete e escorre por entre os pés dos ignorantes. Escorregam a cada passo e afogam-se na sua própria vulgaridade. Cheiram a ranço. Tu já não estás ali porque tu nunca estiveste ali. E não sucumbes. Pensas-te para regressares à realidade que criaste em teu redor, como se a trama da banalidade se pudesse transformar numa teia pacificadora. Mas não há filosofia que ilumine o negrume da razão amaldiçoada. Ficas exausto e dormes durante um século dentro do coração. Quando acordas, não sabes o nome da linguagem que te adormeceu, bem no centro de um novelo de emoções. Depois, durante o dia, acumulas as tuas dúvidas. Hoje, o poema escreve-se no fim. E, todavia, um poema escrito no final da página abre uma fenda para deixar entrar o futuro da página seguinte, ou seja, o princípio de qualquer coisa que mereça ficar na nossa memória, que mereça um pensamento amplo, assim como uma explosão lenta de humanidade:

 

ERRO DE PORTUGUÊS

 

Quando o português chegou

Debaixo de uma bruta chuva

Vestiu o índio

Que pena!

Fosse uma manhã de sol

O índio tinha despido

O português.

Oswald de Andrade (Brasil, 1890-1954),

in «Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de Andrade», 1927



Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_373

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