sábado, 27 de novembro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [26] por Adília César

Notícias e imagens são assim extractos fortemente concentrados da vida ambiente, que, caindo na nossa imaginação, desenvolvem nela toda a emoção viva que em si contêm, – exactamente como essas gotas de essências, que, entornadas num vaso de água, o repassam do seu sabor, do seu aroma, da sua virtude nociva ou benéfica. O Tempo, o velho da negra fouce, é quem ordinariamente se encarrega de reduzir a notícias e imagens os mais complexos e longos factos do espírito ou da vida.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Retrato de Adília César no Museu Municipal de Faro

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HÁ UMA HISTÓRIA

da fotografia que nos acompanha desde 350 a.C., provavelmente conhecida por poucos nesses tempos antigos. Contudo, chegados a 2021, a fotografia é processo corriqueiro e produto banal, onde um burburinho de imagens contrai o tempo e aproxima o passado do presente nas mãos que seguram o smartphone (já nem é necessária a máquina fotográfica). E o futuro?

 

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O BURBURINHO,

o tumulto, os pormenores, a eternidade condensada numa imagem do presente que se transforma em passado. E o futuro? A memória também pode fazer esse trabalho de arquivo, mas é falível, dependendo do nosso estado mental, da nossa idade, dos nossos traumas. O que queremos, de facto, recordar? Já a imagem, a fotografia, implica um processo de inscrição e permanência num catálogo infinito de dados sobre a vida, a natureza, as pessoas, em suma, um catálogo para o futuro. É tentador fixarmos a nossa imagem numa fotografia. Guardar aquele momento, aquele olhar, quem sabe aquele sentimento… E assim, a memória não nos atraiçoará.

 

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MAS

se as fotografias são pegadas do tempo, longo seria o caminho a percorrer para viabilizar a nossa viagem, o nosso trilho diferenciado dos trilhos dos outros. E tiramos selfies, umas atrás das outras; modificamos a imagem inicial com filtros e deturpamos a nossa própria essência. Quem sou eu? A pessoa que vejo ao espelho sem filtros, ou a fotografia melhorada que acabei de partilhar nas redes sociais? E se cada vez mais as fotografias que partilhamos hoje em dia são tornadas públicas e deixam de nos pertencer, as nossas histórias vão-se confundido com os próprios caminhos e resumem-se a um segundo de vida, ou seja, o tempo de visualização na rede.

 

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DE FLASH EM FLASH,

as sucessivas fotografias que partilho desmaterializam-me e mostram uma construção psicológica da pessoa que eu quero mostrar aos outros e não necessariamente quem realmente sou. Muitas vezes, são apenas uma execução desafinada da linda melodia que cada um de nós pode ser, um quase súbito de luz que rapidamente se inscreve no escuro e desaparece. Precisamos regressar à época do espanto e da economia das imagens; precisamos olhar para dentro de nós e dos outros com a alma e não com os olhos, e assim compreendermos melhor quem somos e qual o universo de que queremos fazer parte.

 

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A FOTOGRAFIA

imobiliza a cena e indicia um contexto visual que nem sempre é "visível" ao observador externo. Isto sou eu ou isto não sou eu. As fotografias que partilho desmaterializam-me e mostram uma construção psicológica da pessoa que eu quero mostrar aos outros e não necessariamente quem sou, naquele flash. O que vês de mim não sou eu, é apenas o pouco que eu te quero mostrar. Tanto do que eu não revelo é tudo aquilo que sou.


Adília César, in Notas Contemporâneas [26] por Adília César

https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_317


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