sábado, 2 de outubro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [22] por Adília César

Considerando o estado mental da sociedade portuguesa, ele reconhecia quanto a sua doutrina e as suas conclusões pareceriam incompreensíveis, estranhas, fantasmagóricas. No seu país, Antero era como um exilado de um Céu distante; era quase como um exilado no seu século. Para que, pois, mergulhar na multidão, anunciar uma verdade que a todos se afiguraria um sonho, e um sonho nem ao menos composto com os elementos e os pedaços de realidade que entram sempre no arranjo dos sonhos?

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Museu da Síria" (arte digital) - Tammam Azzam e Henri Matisse 

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HOJE

passei a pé junto a um bairro degradado. No pequeno parque, automóveis de gama alta decoravam o sítio com o glamour próprio da sociedade de consumo. "É uma questão de prioridades", pensei eu. As casas são rascas, mas os carros dão nas vistas. A sociedade de consumo ensinou-nos isso mesmo: é preciso comprar, adquirir mais bens e melhores serviços; é preciso possuir algo palpável a que chamamos de “nosso”; é preciso exigir um maior crescimento económico (é mesmo necessário um "maior crescimento económico"?...). Que verdade é essa?

 

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ENQUANTO

deambulamos pelas lojas nas compras (ah, pois, mas agora somos tão ecológicos porque levamos o saquinho de casa), estamos entretidos a escolher o novo tablet ou o milagroso suplemento alimentar para o almejado emagrecimento, ainda que não necessitemos de perder peso (tudo isto está "tão" na moda). Sim, é uma questão de prioridades que hoje já não são as mesmas de ontem. Parar para pensar nas prioridades, é a minha maior urgência. O resto (as coisas e os serviços), é como a literatura irrelevante e inócua: bem escrita, bem arrumadinha nas páginas dos livros, mas... desinteressante.


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MAS NÃO RESISTO

a adquirir mais um livro. Serei mais feliz porque leio muitos livros? Não sei responder. A ser verdade que também já tive a experiência de ler maus livros, tenho de admitir que na maior parte do tempo estou de luto pela literatura, porque um mau livro mata sempre qualquer coisa que não é apenas do foro literário: a leitura de um mau livro torna-me menos humana.

 

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ÀS VEZES,

sinto-me como uma exilada no meu século. Ou então a minha realidade é feita de pedaços de sonhos que fui buscar ao real que me é oferecido, mesmo que eu não o queira. Ainda assim, o tempo apropria-se das misérias citadinas, sem piedade pelos seus habitantes. Entretanto os políticos fazem promessas, outra vez. Que tédio. Resta-me interceder através do que está ao meu alcance. Procuro agarrar a energia do sonho que me arranca ao meu quotidiano e enfrento-a de frente: a donzela e o dragão medem forças e tomam decisões. Eu saio sempre vencedora. Eu sou o dragão. Há uma linha de escrita visível do espaço porque é feita de fogo: é um vulcão que abre os braços ao mundo, mas depois morre para dentro.

 

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INSISTO NA ARTE

da mesma maneira que pareço ansiar por uma doença, um eczema incomodativo: sinto um ímpeto e escrevo compulsivamente, mas não quero apesar de querer. A experiência estética vai muito além do entretenimento, da compreensão natural de um fenómeno artístico, causando por vezes uma espécie de náusea emocional. A obsessão pela escrita perdura para lá de um frágil equilíbrio, atravessa uma fronteira que eu nem sabia que existia.

Escrever porquê? Só tenho uma "não-resposta": escrevo porque sim.


Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_309

 

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