Afinal
antigamente não havia palavra para azul,/ cor a que os olhos ainda não se tinham
habituado:/ o céu era de um tom indistinguível,/ o mar vinho escuro. (…) Pois
só damos nomes às coisas que encontramos/ e sentimos ao rés da realidade/ como
a ave excêntrica que nos bica os calcanhares.
A história das cores deve ser uma história social das cores, uma vez que é a sociedade de cada época que faz a cor, que a define e lhe dá sentido – o espectáculo do azul na natureza, o modo como a biologia do ser humano percepciona o azul, mas, sobretudo, práticas, códigos, sistemas, mutações, desaparecimentos, inovações e fusões que afectam todos os aspectos da cor azul historicamente observáveis, ou seja, todas as implicações sociais do azul. Ah, o imenso céu (azul?) num claro dia de uma qualquer amena estação do ano… Sendo um fenómeno natural, é também uma construção cultural complexa e ainda se assume como raridade do ponto de vista dos historiadores, enquanto “objecto histórico de pleno direito” – diz-nos Marcel Pastoureau. Existem várias razões para o fenómeno, que se prendem com dificuldades documentais, metodológicas e epistemológicas.
Estamos perante um terreno transdocumental
e transdisciplinar, ou melhor, estamos perante um problema de definição: se
pesquisarmos textos antigos como a Odisseia, a Bíblia, o Alcorão, as sagas
islandesas, conseguimos encontrar amplas descrições do céu e do mar, que nunca
referem, no entanto, o termo azul propriamente dito, utilizando em seu
lugar o cor-de-vinho, o vermelho, o preto, o branco, o verde… mas nunca o azul,
que parece ter sido a última cor a aparecer em todas as línguas conhecidas. A
cor azul do céu e do mar foi alvo de desinteresse e desconfiança, do Neolítico
até à Baixa Idade Média. E na Roma Antiga, ter olhos azuis era uma espécie de
deficiência física… O excerto do poema de Catarina Costa em epígrafe abre a perplexidade
– a palavra azul não existia porque não havia a correspondência com
objectos concretos, definidos e visíveis?
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YInMn, o novo tom de azul |
Presentemente, o azul é a cor preferida de cerca de 45% de pessoas do mundo inteiro, com 111 tons diferentes nomeados, sendo que um desses tons – o novíssimo YlmNm Blue – foi criado em laboratório, acidentalmente, em 2016. Todos os tons de azul são frios e estão associados a diferentes estados emocionais e/ou espirituais: frieza, paz, depressão, ordem, monotonia, harmonia, melancolia, tranquilidade, tristeza, paciência, amabilidade, confiança. E também é uma cor ligada à ciência e tecnologia, inteligência, liberdade e progresso. Não será por acaso que as redes sociais Facebook, Twitter, Tumblr, Instagram, Linked in têm a cor azul no seu logo ou nas suas interfaces, assim como as marcas IBM, HP, Intel. Inconscientemente, a cor está ligada a tecnologia, alivia o stress e significa inteligência, liberdade e progresso; o hyperlink também tem uma explicação simples para a origem da sua cor: nas primeiras telas de computador, o azul era a cor mais escura depois do preto e uma vez consolidada esta tendência, a web também aderiu. Talvez este gosto tão enraizado pelo azul na internet seja a primeira evidência de um consciente colectivo virtual.
Pantone, o sistema de
cores mundialmente conhecido e largamente utilizado na indústria gráfica desde
a década de 60, anunciou a Cor do Ano para 2020 – Classic Blue, um favorito
universal, atemporal e clássico. Diz-nos Leatrice Eiseman, directora executiva
do Pantone Color Institute: “Um azul evocativo sem limites do vasto e
infinito céu noturno, o Pantone 19-4052 Classic Blue encoraja-nos a olhar além
do óbvio para expandir o nosso pensamento; desafiando-nos a pensar mais
profundamente, aumentar nossa perspectiva e abrir o fluxo de comunicação”.
Inúmeros significados atribuídos aos
diferentes tons da mesma cor-luz dignificam uma ampla criatividade ligada às
artes. Alguns nomes de tonalidades azuis, como por exemplo, azul-pacífico
(tom de lavanda) e azul-eterno (azul intenso), correspondentes a duas
espécies de rosas que ostentam pétalas nesses tons, remetem-nos para uma profusa
variedade de textos criativos experimentados por poetas. Eis uma intenção de
poema.
DE TÃO AZUL
Os dedos das rosas muito compridos e
unidos, como membranas de asas ou barbatanas de peixes. Em ousadia de voo, as
rosas caem de uma altura onde o céu está parado da cor azul-pacífico que veio
do futuro da inteligência. Mergulha abruptamente nas ondas do mar, esse
azul-eterno que veio do passado do esquecimento. Chamam as rosas a cor que lhes
pertence, em vão. Rasgam-se as pétalas com os espinhos desse chamamento. Mas há
uma rosa que ainda é azul-espanto, respira azul, canta azul. De tão azul, é uma
rosa que sangra e o sangue vermelho dela em céu azul se transforma. Rosa pacífica
e eterna, a fazer-se bandeira da humanidade esclarecida. De tão azul, essa paz
dos teus olhos nos meus.
Adília César, Janeiro de 2020
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__232"Azul" de O. Lolijov, para ouvir: https://youtu.be/RgCA8zTeFOQ