terça-feira, 16 de abril de 2019

HUMANO, PROFUNDAMENTE HUMANO

I
A primeira mulher é perturbadora na sua norma clássica.
No encaixe dos braços e das pernas
a porta feita de facas acende-se.
Fenda assimétrica no som de abrir o coração.
Range a fábula na perturbação da linguagem
e a palavra eleva-se como um castiçal.
A pulsão esquece a sua milimétrica geometria e sangra
quando atravesso a porta sem a abrir.
Entrar é lembrar e sair é esquecer.
Habito o corpo do mundo que engole todos os lugares.

Isabel Afonso
II
O mapa da tragédia é um labirinto de grutas habitadas
pelo primeiro homem que já não vive aqui.
Desapareceu no coração que implodiu na minha cabeça.
Doença sem antídoto. Anti-matéria. Nada.
Não me lembro do seu nome
nem do nome do idioma que aprendi na pré-história.
Deondevemosom?

III
Se o meu coração ainda estiver vivo
é porque alguém separou o esquecimento do delírio
e embebedou as miríades de poemas
que definiam a humanidade.
Decepou a esperança destes segredos bélicos
às mãos do guerreiro que morreu nas asas da fénix.

IV
As ruínas da terra inauguram as planícies feridas.
Na ausência da palavra, veias e artérias acusam o pensamento.
Arquitectura de fuga ao desespero. Inútil, indecente filosofia.
Tempo desenhado na partitura do meu rosto.
Rugas de uma obra atónita em convalescença.
Refúgios que aceitam as silhuetas sentimentais da memória.
Confio nos movimentos solenes das lanças
e nos vestígios de coisas que se encostam a mim.
A intensidade dos discursos eternos cansa-me.
Descanso um século.

V
O céu aberto enfatiza o novo dia
e adivinho o contorno do meu corpo em contraluz.
Explodir por dentro. Espírito. Aura. Oh luz!
É divina esta sensação lúcida
forma distinta da alegria de outrora.
Adivinhar a serenidade de outros infinitos
quando o sorriso de borboleta era fiel
à concha pura das minhas mãos de criança.
Paz íntima.


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