quarta-feira, 17 de abril de 2019

AMANI - Excerto

Excerto do conto "AMANI" de Adília César:

Editora Lua de Marfim, 2016


(...) Amani sabe que existe, dentro de um cálice quente. Sente a música de um tambor feliz junto ao chão que ainda não lhe pertence. Ela toca o coração pequenino e imagina o céu estrelado dos olhos de sua mãe, o único pedaço de mundo que importa. Mas as estrelas ficam-se pelo firmamento que as segura, em fios frágeis, a iluminar a sinceridade dos pensamentos doces de Amani. Na verdade, não importa o que Amani pensa. As estrelas sabem que a tragédia está eminente, como as consequências de um terramoto, impossíveis de conter nas cidades inventadas para os vivos, apesar de nunca desmoronarem as paredes do mundo que os corações alcançam.

Amani chama sua mãe, quer fazer-lhe todas as perguntas que cabem dentro dos silêncios da guerra. Chama dia após noite, uma e outra vez, em simbiose perfeita com os silvos cantantes das balas e o trovejar calamitoso das bombas, que ela sente e pressente, sem medo, nas memórias da mãe. Os olhos vão acordando em pequenos nós cegos, lavados e coloridos como os sonhos das crianças que ainda não nasceram. Amani faz a pergunta perfeita, tendo em conta a sua condição pura.
- Sou um pássaro?

A mãe não responde. Samira tem os seus próprios pensamentos insanos e as suas dúvidas imperfeitas. Ela sabe que Amani não é um pássaro, mesmo que existam resquícios de asas, que terão a inutilidade da respiração dos sonhos cegos de sua filha.

O mar de Amani é morno e denso. Sabe a amor e a veludo. Poderia ficar assim para sempre, naquele ninho de vida. Um espaço de permanência eterno, tão definitivo como a eventualidade corajosa da passagem do ninho para o céu, a possibilidade de Amani ser um pássaro de asas amplas e libertadoras, para poder voar rumo a um qualquer paraíso, bem longe dali. (...)

Adília César, in antologia «Fronteiras Humanas - O drama dos refugiados», Lua de Marfim Editora, 2016, com coordenação de Fernando Esteves Pinto.

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