Vozes
sombrias afirmarão de novo, em línguas ainda não faladas, que tudo se
desconjunta, que a situação é medonha! Mas quando (…) se vir mais claro num céu
mais limpo, reconhecer-se- á que, em suma, a humanidade deu outro passo
decidido para a frente, no caminho da justiça e no caminho do saber. E assim,
aos tombos e aos socos, ora destroçado, ora reflorido, o mundo avança
irresistivelmente! Onde nos leva esta marcha dolorosa? Não sei – e, se conhecesse
o augusto segredo, não o divulgaria na «Gazeta de Notícias». Leva-nos talvez a
essas cousas sublimes e vagas anunciadas.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Mural "Olhar a Ria" - Xavier Franck, Faro |
*
TANTO
que
ainda não sei. A cidade absorve a minha energia, fecunda o meu pensamento. Mas
o que nasce é uma miscelânea insana, despojada de beleza. A cidade e os seus
vícios. Percorro a calçada como se de um círculo vicioso se tratasse, a morder
as acrobacias do tempo, revelando mundos irreais guardados em cada garganta. O
banco de jardim é o aposento do pobre, um ninho de vida despojado. Assim se vão
ouvindo os clamores do dia, no anverso e no reverso da linguagem.
*
A
LINGUAGEM
pode
ser uma fraqueza humana. A mulher submersa nos nomes das coisas prefere ficar
em silêncio. Ela é a silenciadora dos pecados. A coisa e o nome da coisa em
círculos de nada, por entre espaços vazios de comunicação. A
palavra, o nome, o arquétipo da coisa. A casa na palavra casamuda. O
corpo na palavra corposentado. A casa sem a palavra sua e o corpo sem o
nome seu. Resta a gigantesca e ofuscante palavra cidade que, não sendo
um acaso linguístico, é, no entanto, acontecimento semântico. Por exemplo, cidadetransgressora.
O cão rosna a toda a incompreensão sonora dos símbolos, enquanto o crepúsculo
não chega.
*
O
AMOLADOR DE FACAS
percorre
a imensa rua. Som soprado, vibração. No virar daquela esquina da memória,
talvez seja o refrão da cantiga da minha infância, tão familiar, tão próxima. A
subtileza ainda não inscrita no ouvido que desconhecia a catástrofe. Hoje, o
drama citadino é pedra solta no chão, racha na parede, buraco no telhado, bebé
recém-nascido jogado no lixo. Teatro do quotidiano. Pequeno horror que dura
apenas alguns instantes. Um bebé recém-nascido jogado no lixo. Já está. E
pessoas de todas as idades, predispostas ao erro, de facas em punho, por
julgarem possuir essa necessidade bélica e intrusiva, esse dom trágico e
miserável de difundir o mal.
*
JÁ
O AMOLADOR
de
facas regressa. Morosamente regressa, para deter aquela hora entrelaçada entre
nós e o crepúsculo, segurando a faca que não fere. Regressa para esculpir o meu
assombro perante a indiferença do céu aberto ao calor e ao tédio. Fecho os
olhos e vejo o sol que se deita em câmara lenta, recolhendo na sua garganta o
ar alienado que respiro. O subtil veneno. Ainda mais lentamente, a guilhotina
desce sobre a minha cabeça, dando-me o tempo necessário para a escolha, antes
do fim do dia: sim ou não.
*
DE
NADA ADIANTA
a
delicadeza do gesto. A lâmina tomba sobre o acaso deste episódio anónimo e
abstracto. Resta um ser ainda vivo (ainda?), de quatro patas ao longo do
discurso por decifrar: por exemplo, um cão, uma mulher submersa em culpa, um bebé
recém-nascido abandonado no lixo. Já o amolador de facas descansa sentado no
sofá, em frente da televisão. Chega por fim a noite. Afinal, o crepúsculo já
não é o crepúsculo, é apenas uma palavra. Agora, o nome dela é noitedofim.
*
A
VIDA
deambula
em vagas de bem e mal, numa (des)ordem convocada pela evolução humana. A
finalidade das nossas acções incorpora os vazios profundos das escolhas.
Estamos atulhados em escolhas impossíveis de resolver a entropia da matéria
espiritual. As desordens ética e social proliferam como erva daninha, num
combate corpo a corpo. A busca de uma ordem qualquer que nos apazigue, uma
medida que substancie a quimera do tempo. Perdemos de vista a neguentropia das
nossas vidas, a previsibilidade das nossas acções e, apesar das seculares cicatrizes,
ainda não decifrámos os mapas que nos levarão até à alma do mundo. Sim ou não?
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_349
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