Mas sobretudo sustento que, se a uma literatura faltarem os inovadores, revolucionando incessantemente a Ideia e o Verbo, essa literatura, sujeita a uma disciplina canónica, bem cedo se imobilizará sem remissão numa mediocridade castigada e fria – sobretudo se nela predominam as inteligências claras, flexíveis, comedidas e imitativas (…).
Eça de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Wheat and Wormwood", 1922, Hilma af Klint |
*
AQUELES
que
me escutam não percebem o que digo, porque o significado das palavras é sempre
e apenas uma mera intenção. Eu digo, porque quero dizer o que quero dizer. Os
outros ouvem outra coisa qualquer porque querem ouvir apenas o que querem
ouvir, sem dar espaço à percepção do pensamento. Por exemplo, a intenção
poética pode ser uma caixa cheia de mãos sagradas que não ousamos tocar sem a
devida cerimónia. As minhas mãos, tão profanas, precisam de encontrar outras
mãos que possibilitem o bater das asas que conduz ao voo. São as tuas?
*
AQUELES
que
me olham permanecem nos seus lugares de eleição, o alto dos pedestais junto às
nuvens, porque acreditam que sabem voar, apesar de não possuírem asas. A
autofagia da linguagem cai a pique e desmorona-se numa espécie de ruína
civilizacional. Fica por ali, a ruminar, e perturba a intimidade de um mundo
raro, oculto, provisório. Eu permaneço debaixo das pedras, sem auxílio, na busca
contínua da Ideia e do Verbo.
*
AQUELES
que
me denunciam impõem a subtileza do eu desvanecido com um verso colado na
garganta, vindo do limiar das alturas. Um esplendor jubiloso do humano, através
do qual se abre uma porta para a minha história, onde a essência prevalece
sobre a existência. A vida, a morte, o amor, a vida sempre. Escolho
cuidadosamente as palavras que quero dizer nessa procura: alvéolo, casulo,
cova, ninho. Ou apenas esconderijo da alma. Isto sou eu a pensar, mas as
palavras não parecem ser as minhas. Falta-me a realidade que existia antes
disto que sou agora, antes da última página. Escrevo continuamente, mas os
símbolos ficam cada vez mais pequenos até que se tornam ilegíveis. A utopia
espiritual tem agora o sentido matemático da alucinação obsessiva, da
criatividade esmerada. Voar através das palavras. Adeus, é tudo o que resta.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_350
Sem comentários:
Enviar um comentário