Aqui
e além, repetidamente surge o lampejo fugidio de uma ironia. É o poeta que, no
caminho por onde a Musa o leva, ao lado de uma coisa melancólica encontrou uma
coisa risível. Nada, porém, sai de seus lábios que tenha aspereza ou amargura.
Apenas uma ironia velada de doçura, que resvala, não apoia, lança, ao passar
sobre uma fraqueza humana, o breve clarão de um riso amável: – e logo foge, se
some, na corrente mais larga de simpatias poéticas…
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Imagem do filme "Endless Poetry"* (2016, Alejandro Jodorowsky) |
A
VIDA:
silêncios,
pensamentos e actos. Aqui e além. Entre uns e outros, a comunicação
apresenta-se através de ecos nos vales do tempo. O tempo de uma vida é uma
sucessão de perguntas e respostas, ecos propagados nos espaços que ocupamos
junto dos outros. Não há palavras inconsequentes. A coisa emitida já é a
resposta que merecemos, porque aquilo que recebemos tem a ver com o que acabou
de ser emitido. A simplicidade deste raciocínio invoca a premissa "dar
para receber". Eu acrescentaria "receber para dar", porque
ninguém dá o que não tem. O equilíbrio nos relacionamentos assume-se nessa
sintonia desejada de uma troca em plenitude. Só acontece às vezes e chama-se
felicidade.
*
A
LITERATURA
traz-me
momentos de felicidade. Não são assim tão raros como se poderia pensar à
primeira vista. Por vezes, até um bom título me faz feliz. Por exemplo:
“E Todavia” (livro de poesia de Ana Luísa Amaral); ou “Um homem parado na
esquina do mundo” (romance de Fernando Esteves Pinto). Depois, percorrer as
páginas com o ritmo necessário. Não há propriamente uma meta, mas sim a vivência
de um processo muito pessoal. E, todavia, todos nós somos homens (ou mulheres)
parados(as) na esquina do mundo, mais ou menos melancólicos. Aqui estamos, à
espera que nos amem, à espera que nos admirem, à espera de momentos de
felicidade… À espera.
*
PARA
MIM,
escrever
e publicar livros nunca foi um sonho. Escrevo porque é um imperativo. Sinto que
tenho algo a dizer e pretendo deixá-lo registado na biblioteca do tempo. O
tempo é um espaço composto por espelhos; vamos envelhecendo e percebendo que é
necessário agarrar as horas. Provavelmente, os meus leitores são uma minoria
neste universo já de si austero, mas ainda assim, acredito que a minha missão é
válida e persistirei nessa viagem que noutra época me pareceu impossível. Ao
longo dos anos, vou reescrevendo um longo Poema dos Passos (a primeira
versão deste poema consta do livro “O que se ergue do fogo”, de 2016); nessa
linha de escrita descubro veredas idílicas, mãos com muitos dedos, espelhos
infinitos, paisagens invertidas. E sinto a doçura das camarinhas. Mulheres
submersas com tanto para dizer. Para mim, tudo isso é poesia.
*
A
PALAVRA
tem
o dom de obscurecer ou de iluminar o espírito. O chiaroscuro da
linguagem pertence a todos os séculos e habita o grande corpo planetário e
estelar, nos corpos das coisas vivas e inertes. Sendo o silêncio a maior
descoberta poética de quem se recolhe ao mundo da escrita literária, é preciso
não descurar a importância do grito criador. Saber o que significa cada ímpeto
e decidir o seu destino: inscrevê-lo num livro ou silenciá-lo para sempre.
Contudo, a escrita com significado também pode ser silenciadora, quando damos
demasiada atenção aos espaços entre as palavras. Que dizem esses intervalos que
parecem vazios?
*
A
ESCRITA
não
é uma arma, é a própria luta, como uma batalha emocional e metafórica que se
trava interiormente. Quem escreve está a lutar contra o mundo, não há outra
forma de fazer com que o acto valha a pena, mesmo que a alma seja pequena. A
alma pode ampliar-se com as experiências e os pensamentos sobre o vivido e o
pensado. Pode crescer com a ironia e a crítica, mas cuidado, nunca virá nada de
bom da parte da amabilidade bajuladora: as falsas opiniões são o inferno dos
escritores e as musas cobrem a sua nudez, com pudor, desaparecendo na escuridão
da mente. Entretanto, as musas deram lugar aos tópicos, aos jogos de linguagem,
à franqueza crua e descascada de qualquer estética. O que a literatura perdeu
em floreados românticos ou barrocos ganhou em remates entediantes, e ler poesia
ou prosa, contemporâneas, pode ser um autêntico martírio. Mas de vez em quando
acontecem milagres, pois alguns autores improváveis (porque são fraquinhos) dão
à estampa obras de uma tal qualidade que até parece mentira, dizem os
especialistas. Eu acredito que este fenómeno de competência literária é obra
das Musas, não achas ó Eça?...
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