A arte é tudo – tudo o resto é nada. Só um
livro é capaz de fazer a eternidade de um povo.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Cent Mil Milliards de Poèmes", Raymond Queneau, 1961 |
*
A
ARTE LITERÁRIA
confronta-se
com ela própria. O que se lê está inscrito apenas nos livros ou a leitura
artística pode vir de uma imagem? Ou seja, há outros idiomas que compõem as
linguagens necessárias à definição de uma percepção estética. O
silêncio-êxtase, por exemplo. Estou sentada no sofá, bem direita, atenta às
notícias. Quero saber o estado do mundo. Naturalmente, vejo um pouco de tudo
que, no final, vai-se a ver e nada. E eis que ela me olha de soslaio: bem
direita, mãos depostas sobre o regaço, vestida de escuro. Os cabelos são
longos, como os meus. Escuros, como os meus. O sorriso é enigmático e parece
decorar o rosto de uma alma antiga. Sim, ela é uma alma antiga e se se visse ao
espelho, diria: eu sou a Mona Lisa. Repito: eu sou a Mona Lisa. Eu
diria que a Mona Lisa é um livro aberto. Ela é arte, literatura, poesia. E,
todavia, neste preciso momento, não há palavras ali. Apenas uma resignação escura
vestida à pressa, ou, se preferirem, uma imitação barata. Ainda que reconheça o
carácter não-artístico da peça, o biombo com a reprodução gigantesca da figura
de Mona Lisa, no canto da sala, é o meu ângulo preferido de visão. Desviar os
olhos da televisão para a esquerda e ei-la, é-me oferecido todo aquele
esplendor. Em redor, seis estantes altas arrumam cerca de mil e quinhentos
livros.
*
HÁ
MAIS LIVROS
espalhados
pelas outras divisões da casa. Na verdade, há livros por toda a parte. Eles
possuem todos os ângulos da minha casa. Observam-se uns aos outros e tentam
imaginar o que cada um contém. Às vezes passa-me pela cabeça uma ideia de acção
invertida: imagino que os meus livros são os proprietários do espaço e eu apenas
uma mera convidada de ocasião enquanto os livros também me leem. Depois de me
lerem e de me conhecerem melhor, não sei o que poderá acontecer. Serei uma
leitora interessante para os meus livros? Sinto alguma inquietação, que transformo
rapidamente em questões de múltiplas respostas, sendo que nenhuma delas pode
ser considerada absoluta.
*
O
MEU ESPÍRITO
apresenta
as perguntas, mas, por enquanto, desconheço respostas satisfatórias. As
perguntas continuam a surgir no horizonte, apesar do sorriso da Mona Lisa. Porque
tens tantos livros? – pergunta ela. Porque cada livro lido é um mundo
que nos permite criar mais mundos. – respondo eu. Ela sorri. Imediatamente,
a memória atraiçoa-me e vejo as inúmeras apresentações de livros a que assisti.
*
IRONICAMENTE,
Os
livros são sempre lançados às feras, os leitores. Valha-nos o seu fraco
apetite. Os leitores não comem papel e os livros escapam, incólumes, a esta
espécie de predação literária. Na melhor das hipóteses, são levados para casa
debaixo do braço e arrumados numa estante. De seguida, o inevitável
esquecimento. Os lançamentos e as apresentações de livros têm os seus dias
contados? A excessiva proliferação de obras editadas em Portugal é uma desordem
cultural? As bibliotecas são bordéis de livros? As livrarias são uma espécie em
vias de extinção? O caos literário que temos ao nosso dispor é uma bênção pela
escolha diversificada de autores e obras que sugere ou um sacrilégio, ao não
haver filtros de qualidade fidedignos para o público leigo? A cultura exibe,
talvez demasiadas vezes, cenários destrutivos da própria cultura. Sendo lícito
fragmentar primeiro para depois consolidar, a verdade é que Tanto sabe a
Pouco. Que fazer para se ser um melhor leitor? Nada, cada um que procure o
seu próprio caminho, é livre de o fazer. Livros...há muitos por onde escolher.
*
PENSO
nos
escritores da moda, nos monstros sagrados e em outras espécies menos
vulcânicas, e confronto-me, por vezes, com o que já sei: não há muito a fazer
em relação aos critérios de fama. Cada vez gosto mais de descobrir escritores
que ninguém conhece e de quem ninguém fala: os marginais, os proscritos, os loucos,
os ocultos. De vez em quando há palavras que se iluminam com uma luz só delas.
Podia inventariar uma lista de nomes, mas não vou fazê-lo: cada leitor merece
os escritores que lê e eu ainda luto para descobrir os meus.
*
A
CONTESTAÇÃO
é
incómoda, para quem contesta e para quem é contestado. Decorre do sonho do/a
contestador/a que pretende elevar algo ou alguém a outro patamar melhor ou mais
sublime. Existe muita retórica à volta do acto de contestar, o qual deverá ser
definido através de uma constelação conceptual. Se qualquer conceito é um
objecto divergente, por conter um espelho poliédrico de significados, uma
verdade (incontestável?) estará encerrada no seu nome: como escreveu o poeta
António Gedeão, "eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança, como bola colorida entre
as mãos de uma criança", mas... a pedra filosofal da mudança assenta na
contestação que implica a revolução, porque o sonho de alguém pode ser
incomodativo para outros. Ousemos, então, uma ideia contestatária, um acto
revolucionário, uma parcela nova do nosso mundo. Ousemos: o medo não entra aqui.
*
Imagem: Foto da obra "Cent Mille Milliards de Poèmes" de Raymond Queneau, 1961
Mais informação, aqui: http://emusicale.free.fr/HISTOIRE_DES_ARTS/hda-litterature/QUENEAU-cent_mille_milliards_de_poemes/_cent_mille_milliards.php
Sem comentários:
Enviar um comentário