E se realmente não pensamos mais profundamente
do que em Atenas, sob os plátanos da Academia, nem combatemos mais heroicamente
do que no desfiladeiro das Termópilas – temos decerto repartido entre nós mais
justiça do que no tempo dos Gracos, e há mais saber divulgado entre nós do que
no tempo de Aristóteles. E nesse século XX, de que já nos ocupámos com tão
paternal solicitude, haverá ainda mais saber espalhado, e haverá mais justiça
realizada.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Imagem do filme "Princesse Mandane", de Germaine Dulac, 1928 |
*
O
MEU SÉCULO,
diria
Günter Grass, para revelar histórias de acontecimentos relevantes e outros
triviais relativos ao século XX. No centro, o indivíduo enquanto coral
dramático da narrativa protagoniza o quotidiano, os hábitos e os valores
subjacentes: política, ciência, guerras, dúvidas, interrogações. A escrita é
indagação, mesmo quando se assume como afirmativa.
*
O
MEU SÉCULO XX
é,
em grande parte, um tempo perdido no tempo. Como falar da existência real do
passado, se o que parece vida concreta é apenas o que está a acontecer neste
preciso momento? A vida concreta é a vida presente. E deixemos de lado o
futuro, porque ainda não existe, é pura especulação conceptual. Podemos, no
entanto, falar de um certo legado que deixamos aos nossos herdeiros, os filhos
e os netos. Essa herança é responsabilidade nossa e chama-se “conhecimento”.
*
SABEMOS
HOJE MAIS
do
que no século passado. Mas sabemos hoje menos do que no século passado porque repetimos
os mesmos erros de percepção a partir de acontecimentos diferentes. Se o século
de Günter Grass é de grandeza e horror, tendo em conta a forma como o escritor
o narra, não poderemos dizer muito mais sobre estes vinte e um anos do século XXI,
a não ser, precisamente, grandeza e horror.
*
O
FIM DO REMORSO
aproxima-se
nas imagens que se desvanecem, procuram palavras sem lembranças nem ideias.
Procuro dar um passo atrás de olhos bem abertos. Ver a ideia como um todo e
depois o vislumbre da cena até à moldura. A seguir, ver a fragância das coisas
que querem sair de si próprias. Vejo-te. Tu dizes: isto sou eu, isto não sou
eu. Estás confuso. Vestes e despes os valores que o teu século te apresenta
como se procurasses uma roupa com a medida perfeita, bem ajustada à ocasião,
mas esqueces as medidas do teu espírito.
*
ÉS
UM SER HUMANO
e
ousas a pretensão de seres destruidor, nesse lugar de onde não existe evasão. Penso
no sem-abrigo que te estende a mão à porta do supermercado e que tu finges não
ver. Tu tens fome e ele tem fome, mas não é a mesma fome, entendes? Todos
os dias continuas a vestir e a despir esplêndidas fatiotas de ironia. Diz-me:
também há saldos de emoções? Duas pelo preço de uma? Fica atento. Talvez
encontres emoções em segunda mão. Ou então poderás pedi-las emprestadas ou até
mesmo roubá-las! É tentador, mas não resolve o problema da existência.
*
NA
MINHA CABEÇA,
há
palavras que andam de baloiço. Brincam, geram confusão, não desistem. Parecem
dizer-me que as emoções do meu século deviam ter outro nome: por exemplo, medo.
Repito vezes sem conta que não tenho medo, logo, o medo não existe. A palavra medo
não existe. A emoção medo não existe. Percepciono com clareza um estado
divergente onde a realidade fecha todas as fronteiras. Visualizo o lugar onde
agora me encontro: uma galáxia imaginada ao pormenor, onde comando um exército
de poetas iluminados para combater os incultos de todo o universo. Disseste que
este plano bélico era apenas uma invenção da minha mente, que não era uma
verdade real, que a poesia não serve para nada. Eu sei. Mas enquanto fujo de
certas realidades específicas e flageladoras, aqui neste lugar onde me chamam
louca, estou em paz e invisível. Na minha cabeça, sou uma pessoa e não tenho
medo. Enquanto penso profundamente, o meu espírito desfila, triunfante,
exibindo um soberbo vestido de justiça e esperança.
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