O leitor deixou de ser uma pessoa a quem se
fala isoladamente e com o tricórnio na mão: e o escritor tornou-se tão
impessoal como ele. Não são individualidades cultas comunicando; são duas
substâncias difusas que se penetram, como a luz quando atravessa o ar.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Arte com livros de Ekaterina Panikanova |
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DE
QUE FALAMOS
quando
dizemos literatura? A coisa escrita assume contornos precisos e, ao
mesmo tempo, difusos. Contornos precisos: as letras; contornos difusos: o seu
significado. O leitor percepciona a ideia transmitida pelo escritor, a qual não
é, necessariamente, a mesma. É aí que reside a riqueza da literatura, a
transmissão de algo não redutor ou limitado. Pelo contrário, há uma
amplificação (ou, se preferirem, ramificação) de ideias, conceitos, sensações e
acontecimentos, que conduzem à construção de novo conhecimento. Em suma, a vida
ficcionada. Mas.
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DE
QUEM FALAMOS
quando
dizemos leitor? O leitor e o não-leitor asseguram outro
paradoxo: não se conseguem definir. Antes de tudo, é preciso perceber: o que é
ler? Não será apenas descodificar os símbolos e a forma como se organizam para
elaborar palavras e frases, inscritas no livro ou gravadas no ebook… há
uma atitude pessoal e íntima nas escolhas que fazemos. O que ler? Onde ler?
Dedicamos muito ou pouco tempo à leitura? E o que esperamos ganhar com isso? É
uma obrigação ou um prazer? E porque existem tantos não-leitores?
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TENDO
EM CONTA
a
minha perspectiva de leitora, posso afirmar que não consigo conceber a leitura
como mero entretenimento. Quando leio estou atenta ao contexto e
potencialidades pedagógicas do texto: contacto, análise, compreensão, dedução,
conclusão, aprendizagem. As dúvidas que por vezes ficam são motivadoras de
outras leituras complementares ou até releituras da mesma obra. E porque tenho
necessidades diferentes, leio vários livros ao mesmo tempo. Confuso? Não. Tal
como mudamos as nossas máscaras sociais perante o convívio com diferentes pares
ou parceiros sociais, assim alteramos o nosso registo mental para o adequar à
actividade intelectual do momento. Contudo, leio sempre com prazer.
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DE
VEZ EM QUANDO
releio
“O que Vemos quando Lemos” (2014), um ensaio de Peter Mendelsund, director de
arte da Alfred A. Knopf, uma das mais conceituadas editoras norte-americanas.
Este livro-objecto pode resumir-se como sendo uma fenomenologia da leitura com
recurso a ilustrações: o que vemos quando lemos, além das palavras numa página,
e o que imaginamos nas nossas mentes? O leitor é convidado a reflectir através
de um jogo exímio de afirmações e ilustrações, o qual se pode considerar como
um “código” de acesso a uma nova espécie de linguagem que ultrapassa o
significado das palavras e das ideias contidas nas frases elaboradas pelos
escritores. O autor propõe uma série de exercícios/análises, explicitando os
seus pontos de vista de acordo com imagens surgidas das leituras de obras.
Consegue a proeza de nos fazer estabelecer uma relação íntima com livros que
ainda não lemos! Vejamos uma das primeiras reflexões do livro: “Quando lemos,
estamos imersos. E, quanto mais imersos estamos, menos capacidade temos, no
momento, de voltar a atenção das nossas mentes analíticas para a experiência em
que estamos absorvidos. Deste modo, na verdade, quando discutimos a sensação de
ler, é da memória de termos lido que estamos a falar.”
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MAIS
OU MENOS
Por
esta altura, aparecem as sugestões de leituras de Verão. Ou
deveria dizer leitura veraneante? E agora é que tudo se complica. Ler o quê? Em
fevereiro de 2022, um inquérito do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa revelou que, “nos últimos 12 meses anteriores à recolha
de respostas, 61% dos portugueses não leram um único livro em papel, e, dos 39%
que afirmavam ter lido, a maioria leu pouco.” O mesmo estudo acrescenta: “mais
de metade dos portugueses não lê livros, uma realidade que está fortemente
associada à educação, já que muitos não têm memória de os pais alguma vez os
terem levado a uma livraria ou lhes terem oferecido um livro.” O universo de
quem leu constitui-se por “pequenos leitores” (27%, que leram entre 1 a 5
livros impressos durante o ano), “médios leitores (7%, que leram entre 6 a 20
livros) e grandes leitores (apenas 1% leu mais do que 20 livros por ano). Em
relação à leitura digital, a proporção é semelhante: 5% de “pequenos leitores”,
1% de “médios leitores” e 0% de “grandes leitores”.
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OS
ESTUDOS
relativos
a hábitos de leitura dos portugueses são muito importantes, enquanto
instrumentos reveladores da realidade cultural e como base credível para a
tomada de decisões a nível educativo e até editorial. Se tudo começa na família,
logo aí se verifica a maior fragilidade: “as conclusões do presente estudo
apontam igualmente para a existência de uma relação entre a educação e os
hábitos de leitura, já que, na sua infância e adolescência, a maioria dos
inquiridos não beneficiou de estímulos à leitura gerados em contexto familiar. De
acordo com os dados divulgados, a grande maioria dos inquiridos assume que os
pais nunca os levaram a uma livraria (71%), a uma feira do livro (75%) ou a uma
biblioteca (77%). Por outro lado, 47% assumem que os pais
nunca lhes ofereceram um livro e 54% afirmam que nunca lhes leram um livro de histórias.”
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HOJE,
ao
reflectir sobre este assunto, apetece-me ficar por aqui, assolada, subitamente,
por uma sensação de desconsolo social, logo substituída por uma grata e genuína
alegria: hoje, como em tantos outros dias, li um poema aos meus pequenos
alunos. Eles ouviram e repetiram os versos. Dançaram, declamando os versos
aprendidos. E não satisfeitos com toda aquela inquietação sedutora causada pela
poesia, pediram mais. E ainda não sabem ler… quer dizer, não sabem descodificar
os símbolos da escrita. Mas sabem sentir a leitura. Afinal, ainda há
esperança para os livros que estão à espera de serem lidos.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_344
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