É
que a sociedade assemelha-se à Natureza. E na Europa, como em qualquer espesso
bosque, num fundo de vale, um momento vem em que tudo decai e fenece – os ramos
secam e racham, os mais altos carvalhos tombam de velhice, mil podridões
fermentam, o solo desaparece sob os destroços, a obscuridade aterra, um longo
soluço passa no vento. E, a quem então o atravesse, o bosque afigura-se na
verdade coisa confusa, arruinada e medonha. E, todavia, tudo isso – é
simplesmente Dezembro. É a vida; é a ordem.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Parque temático "No Reino de Gulliver", Japão |
*
E,
TODAVIA,
dezembro
ainda está longe no calendário do tempo. Como de costume, conduzo o meu BMW
negro numa estrada sinuosa na paisagem seca do interior algarvio. O calor
insiste em dobrar o ar, sufoca e pragueja: o verão está a chegar,
ouve-se e vê-se por toda a parte, nos apelos ao turismo de viagem em busca de
lugares mais ou menos idílicos. Que tédio. Vamos e voltamos e nada muda. Vamos
e voltamos para que tudo fique na mesma. Chego ao meu local de trabalho. A
pressão arterial cai a pique, a cabeça lateja, os olhos secam, os tornozelos
incham. O desconforto acentua-se na zona do rosto coberta pela máscara KN95. Neste
mês de junho, não sei como vou conseguir enfrentar a ardência do dia.
*
DESDE
QUE ME LEMBRO,
sempre
tive uma certa adoração pelas estações do ano mais frescas e de certo modo decadentes,
em que o clima vai mostrando o seu lado agreste, as árvores se deixam desnudar,
e a neve assegura um manto gelado que tudo cobre. O outono, o inverno, às vezes
a primavera. O bosque de Eça é também o meu bosque onde “mil podridões
fermentam” e a morte dá origem à vida, num ciclo contínuo, ordenado e eficaz,
assim como uma viagem planeada ao pormenor. No outono e no inverno sinto a
protecção da natureza em todo o meu organismo e o espírito abandona-se a uma
certa atmosfera de paz.
*
GULLIVER
é uma
personagem de ficção literária que me tem importunado nos últimos dias. Faz parte do romance
satírico do escritor irlandês Jonathan Swift, publicado pela primeira vez em
1726. Conheci Gulliver durante a minha
adolescência, numa época em que me rodeava de livros de aventuras porque ainda não tinha descoberto a poesia. “É necessário dar
um passo de cada vez”, dizia-me o meu pai. “Tem cuidado, Gulliver é um pateta”.
*
MAIS TARDE,
falaram-me de um
parque de diversões construído em 1997 – Parque Temático do Reino de Gulliver –
à sombra do Monte Fuji, no Japão, ao lado da Floresta do Suicídio e perto de
Kamihuishiki, cidade onde se fixava a sede terrorista do grupo religioso
responsável por 13 mortes com gás sarin, ocorridas no metro da capital japonesa
em 1995. O parque esteve aberto ao público durante cerca de 4 anos e acabou por
encerrar, a que se seguiu o esquecimento e o abandono. Senti-me tentada a
relacionar os 4 anos de vida do parque às 4 partes do romance: não encontrei uma
relação plausível e abandonei a indagação, concluindo apenas que seria uma
coincidência sem significado.
*
CONTUDO,
o abandono de algo –
edifício, objecto ou ideia – pressupõe sempre um novo caminho, uma nova viagem
com o intuito de procurar e encontrar o que precisamos, no sentido de
substituir o que perdemos, o que abandonámos. Creio que chegou o momento de
escrever a quinta parte da viagem, mais actual, para libertar Gulliver das suas
fraquezas humanas e torná-lo mais digno dum mundo que merece ser salvo, apesar
da fome, da corrupção, da desigualdade, da guerra. A sobrevivência do mundo
parece apoiar-se numa metáfora perigosa, a da rotação do planeta no sistema
solar: gira sobre o seu próprio eixo olhando para dentro e no movimento de
translação não vê o que o rodeia. Faz a mesma viagem uma e outra vez, gira,
insiste, repete, mas continua cego. A criança nasce e tudo queremos para ela: nem
Lilliput nem Brobdingnag, nem pequena nem gigante, mas sim livre e nunca
aprisionada. Que todos os seres vivos possam ser livres. Sabemos que ser livre
é não estar cego. No entanto, a falha ontológica não se corrige.
*
CINCO PARTES,
cinco dedos tem uma
mão. Com esses dedos contaremos as histórias de cada conflito, as viagens
íntimas de cada um de nós em busca de uma verdade maior, para conseguirmos
construir um legado que valha a pena. Eis o mundo: a confusão que se instalou é
de ordem mórbida; abro e fecho as mãos em agonia, enquanto sobem, lentamente,
até à cabeça e apertam as têmporas. Fecho os olhos e repito, em voz alta para
que me ouçam, para que Gulliver desperte do sono profundo do esquecimento e do
abandono: não estou louca, mas sei que não pertenço a este lugar. Gulliver,
quantas mãos serão necessárias para contar todos os nossos fracassos? Até
resolvermos este desafio, eis o paradoxo da vida contemporânea: o caos é,
afinal, a única ordem que somos capazes de construir.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_343
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