Mas
para que insistir? A Natureza mesma desta poesia não suporta os comentários.
Intolerável seria um jardim onde cada flor tivesse preso à haste o grosso
capítulo da botânica que a explica e descreve. Prefácios para versos sinceros
são infinitamente arriscados. Quando se quer mostrar a beleza de um cristal,
movendo-o muito com os dedos – quase sempre se finda por lhe empanar a
transparência e o brilho casto.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
*
INSISTIR
no
que for sombrio, dúbio, questionável. É necessário arrebatar soluções
cristalinas, pensamentos coerentes. Desatar nós, esticar linhas até ao limite
do impossível. E, todavia, as percepções do quotidiano são sorrateiras, como as
osgas que se infiltram, dissimuladas, nos esconderijos do lar. Mas também são
absolutamente necessárias para desmascarar a veemente imprudência de se
acreditar em tudo o que parece ser verdadeiro (refiro-me às percepções do
quotidiano, não às osgas). Insisto, portanto.
*
A
OSGA
submeteu-se
à minha aprovação, bem agarrada à lombada do livro Ângulo Morto de Luís
Quintais. Bem escolhido, sem dúvida. Eu própria já o li três vezes e descubro
sempre algo questionável: assim é o poder da poesia. Apressei-me a iniciar o
diálogo, mas o bicho pareceu perder o interesse e, veloz, desapareceu atrás de
uma prateleira de livros de poesia. Imaginei o destino de um ou dois insectos
que também habitassem aquela rectidão literária de madeira e papel. Foram, com
certeza, engolidos, sem apelo nem agravo, que é para isso que as osgas servem:
para engolir criaturas mais pequeninas e indefesas do que ela. É uma questão de
sobrevivência.
*
COM
A CRÍTICA LITERÁRIA
passa-se
exactamente a mesma coisa: a osga engole os insectos, sendo que a osga é um
intelectual muito competente e os insectos... Bem, para sabermos o que eles de
facto são, teremos de ler as críticas ou os prefácios dos seus livros. Tudo
isto é uma grande tragédia humana, já que, tanto as críticas como os prefácios
podem induzir-nos em erro sobre o carácter genuíno dos poemas a que se referem.
É sempre preferível tomar atenção às primeiras águas da nossa leitura e só
depois fazer outras barrelas com as percepções alheias sobre aquela obra. E,
por fim, enxugar bem o livro e perfumá-lo com uma ou outra afirmação
intelectual de valor. Que também as há, valha-nos isso.
*
MAS
O CLICHÉ
está
na ordem do dia, nas redes sociais e não só: o cliché abundante, oco, breve e…
ternurento. Que doce felicidade não ter que ler mais do que duas linhas de
texto, meia dúzia de versos pouco exigentes, aos quais se seguem entusiásticos
elogios dos ingénuos leitores. Mas será que os autores e os leitores são assim
tão ingénuos?
*
O
CARINHO
que
os autores procuram nas manifestações dos seus leitores devia ter outro nome.
Na verdade, os primeiros desejam ouvir frases redondas de efeito por parte dos
segundos, julgando que, deste modo, apaziguam a sua ansiedade durante o
processo de testagem da obra. Validar ou não a escrita alheia é um acto de
coragem, mas ninguém quer ofender o autor, certo?
*
O
CRÍTICO
teria
aqui um papel essencial na educação literária do público, não enquanto mediador
do gosto, mas na qualidade de intelectual que aprofunda conhecimento e
esclarece dúvidas, tornando o leitor mais competente para o acto de leitura
seguinte. Somos livres de ler o que quisermos e de gostarmos seja do que for,
mas também é verdade que nos enganamos de vez em quando e perdemos demasiado
tempo a ler livros que deveriam estar fechados a sete chaves no baú da
vergonha. Paulo Rodrigues Ferreira afirma que “O pior que tem acontecido à
literatura é precisamente esta medíocre proletarização da vida intelectual,
este achar que um estagiário faz o papel de Barthes, que um qualquer poeta de
subúrbio vem de repente substituir Camões”. Em traços gerais, eu concordo
com ele.
*
NA
VERDADE,
a
osga é um bicho admirável e eu não devia sentir tanta repulsa. É esquiva e
praticamente invisível, escondida num ângulo morto da estante. Poderá até
tornar-se um óptimo animal de estimação, barato e útil. Gosta de ler e, por
enquanto, não critica nem escreve prefácios, apesar da ambição intelectual que
a consome. Por agora, a estante de livros é a sua casa, mas a osga é uma
criatura admirável e sabe que o mundo do conhecimento está ao seu alcance. Eu
também sei e, por enquanto, não critico nem escrevo prefácios, apesar da
ambição intelectual que me consome. Estou tranquila, porque de vez em quando
é-me dado ver a beleza do cristal, a transparência, o brilho casto de um poema.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_342
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