Temos
já misérias, crises, dissoluções, velhas raízes que se despegam, prantos no
vento; pior nos irá quando Dezembro vier: mas através de todas as vicissitudes
sempre se conservará, como na Natureza, a eterna seiva, que é a eterna força.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
*
A
INQUIETAÇÃO
redobra
como badaladas vivas no interior do instrumento cardíaco. Este, já não é um
coração e, parecendo-se mais com uma arritmia do tempo, insiste na receita de
um futuro pouco promissor, por se auto-punir nas acções que os seus habitantes
humanos perpetuam dia após dia. Nada muda, afinal. Somos bestas alucinadas a
quererem viver as vidinhas do costume.
*
POR
EXEMPLO,
uma
ida à praia, o corpo bem besuntado com o protector solar da moda adquirido no
supermercado. A besta nem leva a máscara porque “não é preciso e já não é
obrigatório”. Sente-se feliz e livre em contacto com a maresia. Primeiro um
café na esplanada virada para o mar e depois… A sombrinha, o saco, as toalhas,
a garrafa de água, o chapéu de palha, a cadeira desdobrável, a revista light, o
telemóvel; talvez o maço de cigarros e, sem dúvida, a bola de Berlim. E tira-se
de imediato uma foto aos pés na areia para partilhar nas redes sociais (ainda
não percebeste que isso não me interessa?).
*
FAZ-SE
UMA VIAGEM
pelos
dias acima e não se chega a lugar nenhum. Os jornalistas dos noticiários
televisivos anunciam a guerra e as novas doenças como se fossem mensageiros do
Apocalipse. Os humanos escutam, tornando-se cada vez menos humanos. Lentamente,
vão-se assemelhando a grandes receptáculos de pequenas hipocrisias. A noite
cai, é preciso dormir, mas o sono está atrasado.
*
FRIEDRICH
NIETZSCHE
publicou
os aforismos de Humano, Demasiado Humano – Um livro para espíritos livres
em 1878, sendo a sua primeira obra após a ruptura com o romantismo de Richard
Wagner e o pessimismo de Arthur Schopenhauer. Nietzsche mergulhou
na Filosofia e na Epistemologia implodindo as realidades eternas e as verdades
absolutas, alertando-nos para a inocuidade da metafísica no futuro. Ele procurava
definir o conceito de espírito livre, isto é, aquele que pensa de forma
diferente do que se espera dele: o homem do futuro. O autor acusava a Filosofia
e a Ciência de não cumprirem os seus papéis de criarem espíritos
verdadeiramente livres, e que o homem precisa descobrir-se como Humano,
Demasiado Humano. Na época, o livro não teve uma boa aceitação por parte da
crítica e vendeu apenas 120 cópias no primeiro ano de publicação.
*
AS
MAZELAS
do
mundo actual são as mesmas de outros tempos. Enquanto a natureza tenta resolver
o problema das alterações climáticas, as doenças, as guerras e a corrupção
generalizada cumprem o seu papel de disseminação activa da fome e da miséria.
Porque somos humanos – estupidamente humanos – ainda não conseguimos encontrar
a fórmula da sobrevivência da nossa espécie. Pelo contrário, somos os
orgulhosos descobridores das mil e uma maneiras de matar e de morrer.
*
HOJE,
escreve-se
um livro e o editor faz uma tiragem de 50 exemplares (sem revisão, sem marketing,
sem pagamento de direitos de autor). Nada mais há a fazer do que tirar a casca
e comer cru. Meu caro Nietzsche, como vês, a situação agravou-se. Na verdade, temos
muitos escritores, temos muitos livros, mas não há quem os leia. As ideias são
fabricadas pela comunicação social que os espectadores aceitam passivamente de
bandeja, porque é mais fácil assistir a uma reportagem televisiva do que ler um
livro e formular ideias próprias a partir do que se leu. Não sei, meu caro Nietzsche,
se o teu livro teria hoje mais sucesso. Provavelmente, Humano, Demasiado
Humano – Um livro para espíritos livres teria uma edição de 50 exemplares (sem
revisão, sem marketing, sem pagamento de direitos de autor). Provavelmente,
terias recusado este tipo de “contrato”.
*
MAS
HOJE,
somos
espíritos verdadeiramente livres: demos à luz uma Revolução dos Cravos,
elegemos um governo democrático, cercámo-nos de novas doenças e de guerras e,
sobretudo, respiramos de alívio porque já não usamos máscara. A pandemia vai
farejando: quais as consequências da doença e das vacinas no organismo das
pessoas? Ninguém sabe. Também as alterações climáticas tendem a dramatizar o
teatro das nossas vidas: uma inundação aqui, um deslize de terras ali, uma
erupção vulcânica acolá, extinção de espécies animais por todo o planeta.
*
AS
ESTAÇÔES DO ANO
Têm
os mesmos nomes – primavera, verão, outono, inverno – mas têm outros rostos. Na
verdade, têm apenas uma face – a da insolvência de um processo caótico
delineado pela espécie humana para conduzir a sua acção. Se a literatura já não
cumpre o seu papel de catalisador do pensamento, a formulação de novas teses
(filosóficas) também já não é uma opção. A cada estação do ano mudamos o nosso
guarda-roupa, para nos protegermos do clima, mas não fomos capazes de elaborar
um escudo repelente da estupidez.
*
A
ESTUPIDEZ
é uma característica intrinsecamente humana: não há animal mais estúpido do que o homem (e a mulher), sendo que as redes sociais constituem um dos seus notáveis exemplos. Esta hipótese causa-me um profundo desconforto. Contudo, as crianças enchem-me de esperança e alegria com o seu empenho, os seus sorrisos e a sua franqueza. Ser criança é ser verdadeiro, criativo e feliz. Recordo o tempo em que esperava o que ainda espero. Dos tempos velhos ressurgirão tempos novos, assim nos dita a filosofia do quotidiano. Até quando?
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_341
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