Tudo
se apagou. E descontentes com o tempo presente, as inteligências mergulham na
erudição e no pó da arqueologia!
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
*
GOSTO
DE SABER
que
aquela fera me pertence. Tenho-a no quintal, guardada por uma cerca
electrificada. É um bichinho belo e sedutor. Adoro tê-lo ao colo e fazer-lhe
festas, quando chega a noite. Sabias que aquela cor nunca teve nome? O
leopardo-das-neves é o animal mais esquivo do mundo. Solitário, misterioso,
inteligente. A podestade personificada numa única criatura. Ele passa a vida
inteira sozinho. Neste planeta, não conheço outro objecto de desejo que seja
mais afastado da banalidade, como se toda a existência viva se resumisse ao
leopardo-das-neves, porque nada mais parece fazer sentido.
*
A
BANALIDADE
é
quase imperdoável. As pessoas banais a fazerem coisas banais, como porem a
roupa a lavar ou fritarem pataniscas. Prometi a mim mesma nunca mais fazer essas
coisas corriqueiras. Nunca mais viver como as pessoas banais. Por isso, estou
grata por existir neste século XXII, onde todas essas tarefas são executadas
por elementos com inteligência artificial. Humanóides de aço, plástico e chips
electrónicos. E tu, meu homem de carne e sangue, vais ser polido. Não és
perfeito como o leopardo-das-neves, mas trouxe-te comigo porque pertences a uma
espécie em vias de extinção e aprecio a tua personalidade indefinida. As tuas
mãos quentes. Vestirás um fato auto-ajustável que te protegerá do frio, do
calor, da sujidade. Alimentar-te-ás de água vital e nutriente. Dormirás em modo
de levitação. E estarás à minha espera, todas as noites, ansioso. Um humano
pouco inteligente perdido num mundo de robôs. É assim que eu quero que seja a
nossa relação, mais equilibrada e menos conflituosa do que as que existiram
noutros tempos. Um último aviso: não te aproximes do leopardo-das-neves e tem
cuidado com a cerca electrificada.
*
IMAGINO
vezes
sem fim este monólogo perturbador como uma visão ficcionada do futuro, algo
insólita e preocupante. A noite não me deixa dormir. O silêncio da cidade é
enganador. Parecem dizer-me que está tudo bem, dão a entender que a maioria dos
chips estão em modo de suspensão, insistem na possibilidade de as consciências
estarem dormentes, mas há uma sombra avassaladora que cobre o meu corpo de
inquietações quotidianas, enquanto o espírito deambula num sonho desconhecido,
sem saber onde pousar. A noite e o silêncio podem ser visões do inferno: a
prisão, a guerra, o campo de refugiados: a fome, a doença: o que desiste, o que
combate, o que resiste: o que morre antes do tempo de morrer. Mas estaremos
assim tão longe de uma realidade em que o desenvolvimento da tecnologia, a par
da destruição da natureza, nos imporá novas formas de sermos humanos e de
vivermos as nossas vidas? Ou aquele binómio de forças vai afastar-nos da
equação que traduz a sobrevivência da espécie humana?
*
SOMOS
INDIVÍDUOS
predadores
em relação a todas as outras criaturas vivas. Lutamos pela terra, pela água,
pela comida, pelos valores em que acreditamos. Lutamos uns com os outros. Somos
feitos de sonhos, queremos sempre ir mais rápido, mais longe. Possuir mais
coisas (e pedir empréstimos aos bancos para as adquirir…): equipamentos mais
eficientes e gagdets com mais funcionalidades, comida rápida,
medicamentos para curar todas as doenças, objectos essencialmente inúteis para
usar e deitar fora. Não olhamos a meios para atingirmos os fins – corrupção e
desigualdade social em larga escala. Os nossos dias são feitos de pressupostos
de carência material, mas perante uma guerra, por exemplo, sabemos exactamente
o que é importante: a vida, a família, a saúde, o amor, a liberdade, a
esperança. O lar.
*
FAST
LIFE, FAST TIME.
Mais
mais mais. Ganhar tempo no dia-a-dia, viver mais tempo. Para quê? Para sermos mais
ou menos humanos? O que significa hoje “ser” humano? E o que
significará, no século XXII, “ser” humano? Chegará a humanidade ao século XXII?
Como lidaremos com a inteligência artificial que aprenderá, forçosamente, a
interagir connosco de forma a conquistar o nosso território geográfico, a nossa
propriedade intelectual e ética, uma vez que vai observar-nos e vai apreender
as nossas características predadoras? E, acima de tudo, que será imune a vírus,
bactérias, doenças agudas e incuráveis. A inteligência artificial rir-se-á das
epidemias que nos matam. Será pacífica essa nova ordem social, quando a
eficácia face à sobrevivência das espécies não parece estar do nosso lado?
Teremos nós, humanos, a imperiosa capacidade de adaptação e o tempo necessário
para acompanhar os vertiginosos processos de evolução tecnológica, a par do
nosso desenvolvimento espiritual e moral? Seremos capazes de decidir qual o
lado certo do conflito? Ou corremos o risco de nos transformarmos num gadget
fora de moda? Creio que a essência da nossa humanidade vai perder-se
no caminho do futuro. A vida, a luz corre à nossa frente e nós vamos ficando
para trás, no escuro. Adeus.
*
O
TEU RUGIDO
desperta-me
da letargia em que me encontro há tanto tempo. Tu, meu leopardo-das-neves, és a
medida certa do desequilíbrio planetário: belo, feroz, digno, vivo. O teu
rugido impõe-se como uma verdade inquestionável. E eu tento aprender o teu
idioma de vitória para te poder falar de amor e devoção.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_340
Sem comentários:
Enviar um comentário