A
arte é tudo porque só ela tem a duração – e tudo o resto é nada! As sociedades,
os impérios são varridos da Terra, com os seus costumes, as suas glórias, as
suas riquezas: e se não passam de memória fugidia dos homens, se ainda para
eles se voltam impiedosamente as curiosidades, é porque deles ficou algum
vestígio de arte, a coluna tombada de um palácio, ou quatro versos de um
pergaminho.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
*
EM
REDOR
de
um globo terrestre os objectos estão dispostos de acordo com a sua importância.
Percebe-se a hierarquia estabelecida, através da forma como esses diferentes
objectos se mostram e se escondem, nas posições ocupadas no espaço disponível.
Há livros, muitos livros encostados uns aos outros, apoiando-se mutuamente, à
espera de qualquer coisa que tarda em chegar. Alguns quadros esboçam
auto-retratos de personagens diluídas na memória humana. As janelas, muito
altas, parecem rostos sem boca. Nada têm para dizer quando tudo já foi dito. Árvores
ainda vivas rompem o chão daquele santuário e procuram a luz elevada na ruína
do tecto aberto. O tecto, enquanto metáfora perfeita de fuga, rende-se,
contudo, à melancolia do abandono.
*
UM
SUSSURRO
de
vento insiste, infiltra-se em todas as fissuras. O pó assume uma espécie de protagonismo,
teimando em manter as outras personagens invisíveis: é o teatro do apocalipse.
Da primeira vez do medo, o vento parece ligeiramente significante ao errar o
grito. Eco apenas levemente ecoado. Apenas um sussurro. Eis o rumor do fim.
Depois, o pavor nidifica, torna-se menos misterioso e mais aceitável; vai
pousando um pouco por toda a parte até que, finalmente, os objectos se habituam
à sua presença.
*
A
PUREZA
do
regresso às origens, antes das palavras. A pureza da semiobscuridade. A pureza
da luz depois das palavras. A pureza pode ser uma ideia perigosa. Todas as
cadeiras tombam, menos uma. Os olhos movem-se, obstinados, enfrentando a única
cadeira que não acompanha o desalento das outras.
*
A
CADEIRA
guarda
o lugar do último actor em cena. Está porventura cansado, pois permaneceu em
palco, de pé, desde o primeiro minuto do fim. O seu papel era o de se inclinar
ao Poema inscrito no pergaminho da memória. Aproxima-se uma nova era e é
preciso invocar qualquer coisa genuína. Agora, o último actor perdeu-se naquele
quase-espaço, parou naquele quase-tempo. Isso mesmo, és quase o que se espera
que sejas, quase. Mas ainda não.
*
abre
o espaço ao tempo. Não sendo uma fronteira, ganha poder o trilho adormecido da
sabedoria, ampliando-se até à sombra rotativa. Estou decididamente presa num
fatídico lugar, não consigo excluir-me da dimensão avassaladora da ruína. E
penso: o conceito de ruína assemelha-se a um relógio avariado por ser passado,
presente e futuro no mesmo mecanismo. E decido que já não há tempo para esperar
por ti.
*
E,
TODAVIA,
eu
espero. O mundo, enquanto entidade humana, mumifica as ideias alheias nos
livros e enterra-as nos sarcófagos do espírito distraído, iletrado. Não basta
escrever, é preciso que o que foi escrito seja lido e, assim, a ideia poderia
ser ave do paraíso, poderia ser o futuro da humanidade. Mas não há tempo para pregões,
não há tempo para esperar por nós. O teu universo e o meu universo nunca serão
o universo dos outros. Tu e eu somos, por enquanto, invisíveis, somos livros
escritos com sumo de limão. Mas ainda acreditamos que só a emoção da arte será
capaz de arrancar os olhos cegos do rosto da humanidade, para que ela possa ver
nascer um novo rosto que não pertença a este mundo. O globo terrestre gira
sobre si próprio, porque sabe que não tem outro lugar para onde possa ir.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_339
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