Depois
o autor ia levando o leitor pela mão através da sua obra como através de um
jardim que se mostra, repercorrendo com gosto as áleas mais enfeitadas de
erudição, parando por vezes a conversar docemente à sombra de um pensamento
frondoso. Assim se formava entre ambos uma enternecida intimidade espiritual. O
leitor possuía no homem de letras um companheiro de solidão, de um encanto
sempre renovado. O autor encontrava no leitor uma atenção demorada, fiel,
crente: como filósofo tinha nele um discípulo, como poeta um confidente.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Arte de Isabel Afonso* |
*
LER
UMA OBRA LITERÁRIA
não
é o mesmo que apreciar um jardim. Uma flor não é um poema. E o escritor não é,
necessariamente, um deus que adoramos, nem sequer tem de ser uma pessoa de
inequívocas qualidades amigáveis ou sedutoras. A obra pode ser fascinante, mas
o seu autor corre o risco de ser apenas pouco atractivo ou até boçal. Assim
aconteceu uma, duas, três, muitas vezes, até que fraquejei na demanda. Decidi
então que não era necessário conhecer o autor, mas sim ler e apreciar a sua
obra. Vejamos.
*
ENTRETANTO,
num
determinado encontro literário, afirmei que após a boa leitura de um livro gostava
de conhecer o seu autor pessoalmente, porque a conversa presencial abria a
minha visão à leitura que tinha feito da obra. Contudo, esse testemunho público
teve um efeito perverso, acabando por me erradicar do cenário literário, por força
de alguns desentendimentos. Arrancou-me à esfera do protagonismo festivaleiro e
recentrou-me numa espécie de casulo que é a minha linha de escrita e de leitura:
uma “forma redonda de ser”[i] criadora de modo imersivo,
emocional, racional. Em suma, uma maneira de ser alguém que pretende perceber e
dizer alguma coisa arrancada ao “ser-de-dentro”: gosto de lhe chamar “peso da
memória que carrego”; noutros dias, dou-lhe o nome de “sonho desmedido” ou
ainda “mecanismo imperfeito”. Ideias arrancadas a ferros, digo.
*
MAS
ACONTECEU
o
melhor de dois mundos: conheci intimamente um escritor do qual admirava a obra
e o amor ficou a morar connosco numa “forma redonda de ser” – isto foi ele que
me disse. Ler a obra e ler o homem que a escreveu tornou-se assim a missão da
mulher que vivia num casulo e o ampliou até ao tamanho do mundo, tal é o poder
da obra dele, tal é o poder dele. O dia e a noite. O tempo todo.
*
E
QUEM SOU EU
quando
escrevo e leio? Serei a mesma pessoa? A espiral da viagem deixa-me
perfeitamente lúcida quanto às ideias que quero descobrir e que pretendo
revelar. As ideias que leio e as ideias que escrevo não são as mesmas. É um caos
organizado, implícito nas memórias do passado e nos desejos do futuro que
pertencem a duas pessoas diferentes: o escritor e o leitor. Ou serão a mesma
pessoa ao espelho?
*
APERCEBO-ME
que o espelho é uma metáfora viável para o meu dilema, talvez a que melhor corresponde, nesta hora de recolhimento, à implícita solução. De um ponto de vista poético, do céu tombam pássaros, lâmpadas e outras partículas sentimentais. Ele, o escritor, ofereceu-me um espelho novo onde a minha cabeça parece a mesma em todas as figuras: bela como um seixo nas águas pequenas, forte como uma trança que cresceu ao longo de um século. Eu continuo a olhar-me no espelho. Mas realçar o ovalado dos rostos é apenas intenção de pureza, essa presença organizadora da espiral meditativa. É cascata de sangue a regar o jardim jubilado – esse abismo comovido de flor em flor. A vida a acontecer num espelho que se partiu é idade cega e arrumada nos olhos da noite. Ler, escrever, conhecer, amar. Apercebo-me, afinal, que uma flor pode ser um poema. E na hora tardia que me embala, antevejo o meu protagonismo no dilema ecoado até ao infinito. Ainda não é uma voz, mas talvez já seja um murmúrio de sombra e asa, ornamento, convergência. No espelho, sou eu.
[i] Verso de Fernando Esteves Pinto
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_338
* Trabalho de Isabel Afonso exposto na Galeria Mira (Porto) e depois escolhido para o jornal Le Monde Diplomatique (versão Portuguesa)
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