«Quando desaparecer/
hei-de pedir à noite/ que me consuma com ela/
que me devaste a alma/
não quero mais/ quero desaparecer na noite/
e só de noite
consumir-me» (p. 139).
António Gancho
(1940-2005), in O Ar da Manhã, 1995
Ele tinha umas «mãos curvas de milagre»,
molhadas de nervosismo, mãos-delírio, mãos-pensamento. Que guardava António
Gancho nas mãos que tão cedo deixaram de escrever? Via-se que ele – o rapaz de vinte
anos – estava ali; mas ele – o homem de sessenta e cinco anos – não estava
realmente ali, enquanto entontecíamos nos seus olhos muito azuis, nas suas mãos
mergulhadas no tempo todo de uma vida: estava declarado como esquizofrénico e após
uma tentativa de suicídio, aos 18 anos, António Gancho foi declarado
esquizofrénico e acabou por passar trinta e oito anos em instituições
psiquiátricas até à sua morte na Casa do Telhal em Sintra.
Ficou assim a sua vida suspensa, por
vontade do pai e dos médicos, pouco depois do episódio atabalhoado da tentativa
de suicídio com o fio do telefone. Vida ferida pelos ganchos dos dias, vida atada
e desfeita em fios de linguagem. Uns e outros – os ganchos e os fios – sempre
presentes na escrita e na ausência da própria escrita, nos poemas aniquilados
pela dificuldade de transmutação de todas as coisas – as horas que passam tão
sem passar, a materialidade sonora dos versos mais lúdicos e surrealistas, a totalização
do homem na natureza, a mulher que se ama e se erotiza, o amor puro e duro no
acto sexual transcendente; e a poesia, a sua função e o processo maravilhoso da
criação poética, ao considerar que quando «A poesia nasce e faz-se aqui neste
fazer-se poesia / (…) faz o homem o ser absoluto por natureza» (p. 9).
António Gancho imaginava uma comunhão
total na origem das coisas, o sol e o poema feitos de luz. É luminoso o sol
nascente a cada dia; e o mesmo poder brilhante é dado a cada poema escrito na
folha de papel: «Nasce o sol e nasce o poema/ e com esta simultaneidade / o que o poeta
significa é que a sua arte é luz / esta manhã o poema nasce no ventre do papel
e nasce o Sol no horizonte do papel» (p. 38). Parecia caminhar no
sentido inverso da prisão em que se encontrava há tanto tempo, na procura de
uma alusão poética que desse sentido a tudo o que tinha e não tinha acontecido
na sua vida. Uma vida em pausa, à espera de qualquer coisa que nunca chegou. E
para isso, o poeta escreve e “abre” aquilo que tem ao seu alcance,
distanciando-se da sua esquizofrenia, o “tu” demolidor:
«Tinhas uma
sensação absoluta de estares aberto com o espaço duma grade/ tinhas um ser-te
grave o olhar para fora do dia/ inaugurado de verde/ Que se te abrisse a letra/
era desejo de teres fonemas no nada de uma mão aberta/ sem um rogar de branco./
O Sol aberto em sentido de alusão a uma palavra de si/ era nada de o poente
estar em sentido inverso.» (p. 54)
António Luís Valente Gancho nasceu em
Évora em 1940. Foi para Lisboa aos 16 anos com a família, onde descobriu o Café
Gelo, no Rossio, hoje desaparecido, mas que então era o ponto de encontro de um
grupo surrealista, e que veio a ter grande impacto na sua escrita. É pela mão
do amigo e poeta Herberto Helder que alguns poemas de António Gancho são
publicados pela primeira vez, numa antologia editada em 1985 pela Assírio &
Alvim: Edoi
Lelia Doura das Vozes Comunicantes da Poesia Moderna Portuguesa. Em 1995, a
mesma editora publicou o volume O Ar da Manhã, reunindo quatro livros: O
Ar da Manhã, Gaio do Espírito, Poesia Prometida e Poemas
Digitais; e ainda o conto As Dioptrias de Elisa (1996).
E depois, nada. Apesar destas publicações,
parece ter permanecido à margem da poesia institucional portuguesa. E hoje,
será um poeta esquecido? Na verdade, a partir de 1986 que António
Gancho deixou de escrever poemas. Quantas palavras são precisas para
imortalizar um homem? Muitas, decerto. Mas talvez bastem algumas dezenas de
poemas, para considerar o frágil António Gancho como o ar intensamente poético
que ainda perfuma as nossas manhãs de hoje:
«Faço um poema e
nasce uma cidade/ invento o conteúdo geográfico das coisas. (…) Ah, se onde
ponho a imaginação nasce um lírio/ derramem-me a história duma amante sobre a
cabeça/ pois sou o amante duma perversão absoluta.» (p. 41)
Esta era a obsessão e o poder do poeta
António Gancho, o epicentro desconhecido do fio de tudo. O amor? Amar o quê?
Uma mulher? Tinhas de saber o que amas, tinhas de saber quem amas e quem te ama
a ti, António. Disseste que nenhuma mulher te amou. Mas casaste-te com esse
lugar onde te encerraram e deitaste-te no seu coração de colmeia. Alvéolo antigo,
prometido favo de mel com cura de fel. Fica atento, há uma grande excepção à
regra: podes comer todo este mel, todo esse fel, sem nunca conheceres o amor. Enquanto
vivias aí para sempre, à espera de um final feliz, querias ser o rei, mas morreste
antes de fundirem o ouro com que seria feita a tua coroa. Não sabes das
abelhas, as escravas que te amavam, as palavras que pairavam na tua cabeça, os
bichos da tua esquizofrenia. Mandaste todas as escravas embora, obedientes, a
zumbir, de cada vez que engolias os comprimidos que te ofereciam. E eu, quando
leio os teus poemas, lavo os cabelos com a pureza do mel e encosto o espírito à
rede desenhada com ouro líquido. Funde-se com o pensamento nas raízes de dor. Fecunda-se
no seu súbito significado, os súbitos dos dedos hirtos. A dor é mais eterna do
que o amor escondido numa grinalda velha cheia de pó. As mulheres não são
princesas encantadas, não te cobrem com colchas macias de veludo. As normas
gerais foram escritas pelos insectos presos no mel e o sol implodiu, levou com
ele tudo o que sabia sobre a possibilidade do amor. A nudez, essa janela falsa
sobre a noite tão escura. O erotismo, essa abstracta impossibilidade. Não és
capaz de fechar o postigo, não consegues perceber a excepção. Vê que as abelhas
inúteis, indecentes, já não voltam. Retiraram o ouro às tuas veias, esse metal
omnipresente, alucinatório, cansativo e vil. Deixaram-te vazio, de coração
apagado, carregado de ferrões alucinatórios. Pego nele com as minhas mãos
curvas de milagre, queres? Isto é que é um coração cheio de amor? Entupido
com bolas de pão duro? No enterro das nuvens ninguém tem fome, para que serve o
teu corpo se as tuas mãos estão paralisadas, se os teus dedos são feitos de pó? Mas deixa-me ouvir as abelhas que
dançam sobre os teus olhos azulinos de ninguém e que declamam os poemas que
nunca chegaste a escrever. Toda a humanidade presa por ganchos poéticos nas nossas
mãos curvas de milagre. Anda António, não engulas mais comprimidos, que te
fazem mal ao coração. Vamos comer bolinhos e beber copos de leite.
Dizes que sim, comes bolinhos e bebes copos de leite, mas tudo ficou por dizer, pois deixaste de escrever poemas há muito tempo. A tua vida foi uma narrativa intensa, embora desviada da plenitude. Na última linha esperava-se a outra metade da história: acontecimentos apenas habitáveis, mas nunca deveras vividos. E por fim, existindo um território comum, uma partitura criativa e fecunda, como se o silêncio da contemplação fosse a viagem eterna de regresso às nossas origens, o teu coração parou. Assim o tempo a passar é um grito azul clarinho: guarda-se em qualquer lugar despercebido, como uma marca d’água sem consequências. A perplexidade é sentimento quente que arrefece abruptamente no colo, sobre as mãos. Faz-se tarde. É sempre tarde quando o silêncio se funde com as nossas gargantas. É demasiado tarde quando o gancho nos rasga o pensamento e os milagres deixam de acontecer. Dizes que nada disso tem importância, que em redor daquela última noite ainda nasciam ruídos de boca e outros caminhos; mas não, afinal apenas tinhas voz no tempo em que as grades derretiam e os muros desmoronavam na boca da liberdade. Morreste-nos. E agora faz tanto frio nesta falha da memória sobre o que foi a tua vida. E ninguém sabe o que fazer com esse imenso frio do esquecimento.
Setembro de 2021, Adília César, in https://revistaoresteia.com/2021/09/19/2025/
A revista Oresteia de Setembro de 2021: https://revistaoresteia.com/
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