Ora
o júri da Academia parece também pensar que livros de viagens, odes, comédias,
dramas em verso, romances arqueológicos – tudo são coisas em letra redonda.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Poética Orgânica - Hugo França
FIZ
UMA VIAGEM
pelos
dias acima e encontrei o passado. Não foi o tempo remoto, oblíquo, consignado a
um ponto de fuga dos acontecimentos. Não foi o tempo da memória ofuscada. Pelo
contrário, esse tempo era um dia muito presente, fresco, inalterado, tal como
as pequenas fontes de movimentação circular e contínua que nunca secam nem
mudam de lugar. Por exemplo: uma fotografia numa página de jornal: uma legenda
que queremos ler à pressa: ou apenas um certo fastio.
*
OS
PRÉMIOS
literários
dão que falar e, portanto, todos dão a sua opinião – merecido, não merecido,
nem por isso. Eu não tenho opinião. Como poderia ousar um pensamento de
admiração, inveja, desagrado ou indiferença por algo que desconheço? Resta-me a
curiosidade. O que significa ser o melhor livro a concurso? Nada, muito?
Ocorre-me uma ideia obstinada e omnipresente que me parece verdadeira, no
sentido em que a seta não erra o alvo: aquele livro foi considerado o
melhor livro a concurso, tendo em conta os critérios daquele júri
específico. Ah… é isso: o mistério está desvendado.
*
AS
ACADEMIAS
literárias
proliferam. Umas, ad aeternum, robustas como rainhas velhas. Outras,
viçosas e inofensivas como cabritinhos. A maior parte delas – as rainhas –
erguem altos muros de alvenaria em seu redor e só lá entra quem possui a
palavra-passe. Uma proeza de engenharia corporativa. O grupo de iluminados e o
novo candidato – aos saltinhos para se mostrar, como belo cabritinho que é, –
testemunham o mesmo incómodo: Portugal é um país de escritores. E agora? Resta
um belo cozido à portuguesa para enfardar, porque nada disto se pode comer cru.
*
É
TAMBÉM VERDADE
que
os escritores portugueses têm alguma vantagem, ainda que frágil, em relação aos
escritores do resto do mundo: escrevem numa língua que pouca gente escreve e
pouca gente lê e, assim, a concorrência é aceitável. Contudo, no seio deste
marasmo manso das palavras portuguesas, a concorrência é desleal. Tenho provas
irrefutáveis de que o sucesso não persegue os melhores escritores, mas são
mistérios com muitas pontas soltas que, afinal, não seria justo revelar. Creio
que até seria perigoso para a minha integridade física – ou será que quero
dizer integridade literária?... Bem, prefiro escrever poesia porque não
aprecio as poses dos cabritinhos e o som dos seus badalos. «Não é a poesia um
pouco isso, esse vigor de um maestro que, em vez de mandar este ou aquele
músico tocar, é o maestro que antes manda calar?» (António Franco Alexandre,
entrevista ao Jornal i de 28/10/2021).
*
A
LETRA REDONDA
obriga-nos
à utilização de uma visão periférica. Tomar consciência daquele pedaço de mundo
escrito, visualizar a página e ter coragem para prosseguir. É um caminho de
silvas, de rosas com espinhos. E ninguém se cala… O ruído invade o livro e
protagoniza demónios. E, todavia, adoro os meus demónios feitos de letras
redondas. Um dia, hei-de escrever um poema concentrado num ponto universal,
feito apenas dos dias de silêncio, para recuperar da futilidade das palavras.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_313
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