Trocadas
estas cortesias não se entrava logo secamente nas ideias ou nos factos: se o
livro era de versos, o poeta, tendo o leitor ao seu lado, balançava o
incensador e fazia uma invocação aos deuses como nos degraus de um santuário;
se era tratado, moral ou história, havia no limiar do capítulo I, para que o
escritor e o leitor repousassem, um pórtico de considerações gerais, dispostas
com simetria à maneira de colunas de puro mármore, onde se enrolavam, em festões,
flores de linguagem, viçosas ou meio murchas.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Natrureza Morta com Copos num Cesto (1644), Sébastien Stoskopoff |
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O
PRINCÍPIO
de
uma obra nem sempre se exibe no Capítulo I. É preciso insistir no prefácio
robusto, no texto glorioso, no discurso musculado; o prefácio explicitará, sem
qualquer sombra de dúvida, os excelentes meandros literários que o autor tão
bem conseguiu esconder nas frases e até nos espaços entre as palavras, e que
serão revelados pela varinha mágica do prefaciador.
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SE
O PREFACIADOR
é
também um leitor, rendemo-nos aos detalhados elogios do seu discurso
introdutório. Afinal, ele já viu o que nós ainda não vimos. Ou não… vendo bem,
entre um prefaciador e um autor há frequentes trocas de galhardetes, digo,
troca de cortesias. Por isso, muitas vezes, o prefácio destina-se apenas ao
autor e de nada serve para os outros eventuais leitores.
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NAS
APRESENTAÇÕES
de livros acontece com frequência ouvirmos o apresentador ler o prefácio que redigiu para aquela obra. A pompa e circunstância dessa leitura envolve-se numa atmosfera de pseudo-templo sagrado, com cheiro a mofo e cores desbotadas. E aquelas considerações gerais que cabem em qualquer livro que pertença ao mesmo género, tipo “minuta” ou “modelo”, fazem cair por terra a solenidade do evento, à medida que o experiente apresentador vai replicando de evento em evento. Ficam os sorrisos amarelos a pairar nos versos, nos tratados, nas histórias.
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LONGE
vai
o tempo em que eu participava nas apresentações públicas de livros: cada acto
inauguratório de uma obra excedia em qualidade, na opinião do respectivo apresentador,
qualquer outra obra que tivesse sido apresentada anteriormente. Num determinado
evento que recordo com amargura, fiquei atordoada, de súbito, pelo sentimento
de “inundação por excesso de qualidade” cultivado pelos presentes convidados
para falar sobre a obra em causa – um péssimo livro de poesia – e foi preciso ganhar
coragem para construir uma barragem e impedir o afogamento da mente, assim como
uma espécie de arquitectura emocional ao serviço da minha educação literária.
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AS
FLORES
nascem timidamente, florescem viçosas, mas murcharão, inevitavelmente. Até as flores da linguagem passarão pelo processo de deterioração que atribui e retira qualidade à obra literária. Cada livro é uma flor viva e não permanece inalterado no tempo. Pelo contrário. O livro, estando à mercê dos seus leitores, será sempre o que estes disserem sobre aquele. É preciso devolver à literatura a simplicidade da escrita (do autor) e da desejável leitura (do leitor), ultrapassando o prefácio demagógico e a apresentação tendenciosa. Um escreve e o outro lê. O que sobra para perfumar a Biblioteca do Tempo?
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_315
Muito certo gostei imenso.
ResponderEliminarMuito bom, Adília!
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