Bem
fazes tu! Colhes apenas a flor das cousas que pode ser roxa e melancólica ou
amarela e festiva, mas é sempre uma flor; enquanto nós nos dobramos a analisar
as raízes que são negras, que são feias, e vêm sujas de terra rude em que
mergulham e sugam.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
*
É
NATAL
outra vez. Um certo tédio ou talvez melancolia. As cores são sempre as mesmas das de outros Natais, mas são também diferentes. Este Natal não tem cor ou então é uma sombra doentia, um papagaio lançado ao céu, feito de papel de embrulho e fitas. Olhamos para ele e vemos o que nunca deveríamos ter visto: a decadência da civilização. O papagaio de papel arrasta com ele máscaras, gel desinfectante, testes antigénio e PCR, zaragatoas e uma multidão de pequenas criaturas bem embrulhadas em SARS-CoV-2. A febre. Decididamente, este papagaio não se presta a brincadeiras, identifica-se mais com uma arma de extermínio humano.
*
É
NATAL
outra
vez. Um certo receio ou talvez tristeza. Os hábitos são sempre os mesmos:
comprar presentes inúteis, comer o pobre peru, doces até enjoar e beber para
esquecer. Olhamos para a mesa da Consoada e os restos que sobram sabem a
saudade. Já houve pelo menos um Natal Feliz? Sim, houve. Agora, não sei. O peru
morreu e a alegria dura pouco na lâmpada que repentinamente se funde. No
escuro, não sabemos onde pousar a inquietação.
*
A
MÃE
é
uma velhinha de cabelos brancos. Está cansada de viver. Continua a rezar todos
os dias, mas a convicção já não é a mesma: esta pandemia é o diabo!, diz
ela. As cataratas reorganizam-se nas suas pupilas para que os olhos não
desmascarem a face da civilização, que ela tão bem conhecia noutros tempos
menos ambíguos. A mãe queria estar sozinha: isto já não tem volta a dar…
olha filha, já que vens jantar comigo, traz-me um bolo-rainha daqueles com
frutos secos, que as frutas cristalizadas do bolo-rei dão-me náuseas.
*
O
MENINO JESUS
não
vai ser adorado, este ano. Os ajuntamentos de pessoas estão proibidos e existe
o perigo real de infectarmos o recém-nascido com COVID-19 ou então a criança
poderá infectarnos a nós. A inocência da infância deveria ter outro nome, como
“estrela cadente” ou “mistério”. Assim, é melhor guardarmos as devidas
distâncias neste Natal, mais uma vez (até quando?), de acordo com este
miserabilismo de sermos agentes transmissores de uma doença real à escala
global.
*
MAS
e
a flor? São capazes de ver a flor desta coisa recorrente a que chamamos Natal?
A estrela da esperança que brilha sem esmorecer, o sorriso dos meus netos
durante o ritual de abrir as prendas, as maravilhosas broas da Dona Angélica…
Ao longe, ouve-se distintamente o som do sino a apregoar as horas natalícias. E
recebo um telefonema: o jantar de Natal está cancelado porque uma das filhas
está infectada. O resto da família fecha-se nas suas casas e todos se preparam
para serem testados no dia seguinte. Enquanto esperam, esgaravatam na terra
suja à procura das raízes da vida que tinham antes. Antes? Antes do quê?
*
SINTO
O ABRAÇO
invisível
das pessoas nos votos de Boas Festas que me dirigem. Respondo o que se espera
que eu responda e calo o que não se espera que eu diga. Tanto num caso como no
outro, o discurso é indelével e ao mesmo tempo efémero. No final da conversa de
circunstância dizemos: Com muita saúde! E a expressão de sentido
duvidoso não se vai embora, fica por ali a pairar no tempo até que apareça o
maldito arco-íris. Apesar de tudo, a esperança também pode ser uma doença, ao
não aceitarmos o que ainda está para vir, como se ainda não tivéssemos
percebido que as consequências sucedem os actos. O planeta está doente, os
homens e as mulheres são seres corrompidos, e só o Amor não basta. Mas é Natal
e nasceu um Menino. As crianças transformam-se em flores, unidas desde as
raízes, porque sabem que são a salvação do mundo.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_320
Sem dúvida um texto muito bom. Beijinhos
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