Tudo
esqueceu? Não. Desta difusa impressão, algumas imagens começam logo a destacar,
muito precisas, muito claras, dando pela recordação o mesmo encanto que deram
pela contemplação.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
10ª edição London Design Festival, 2012 - "Mimicry Chairs", Oki Sato |
*
parece
um sonho. Uma certa leveza ou talvez transparência. A minha lucidez
atraiçoa-me. Não sei do meu corpo, não reconheço a posição que ele ocupa, não
assimilo a força da gravidade que o segura e o faz tombar. Há uma energia
subtilmente enjoativa a povoar o ambiente do quarto. A um canto, surge a figura
densa e perturbadora de uma construção humana que se vai desmoronando à medida
que se constrói, que se reconstrói, digo. É um paradoxo sentimental de
pensamentos sem nexo, de palavras sem ordem gramatical, como as ruínas que se
sobrepõem de forma adversa a elas mesmas. A linguagem de circunstância não
implica qualquer concordância moral com o que está certo ou errado, naquele
preciso momento. E, todavia, faz todo o sentido que assim seja.
*
NAQUELE PRECISO MOMENTO,
o silêncio da noite convoca o meu
pensamento. Dormir não é uma opção. Levanto-me da cama, mas as forças do sangue
abandonam-me e tento alcançar a mão gigantesca da humanidade que me poderá
salvar da queda. Mas não se faz da fraqueza força, não encontro o ponto de
equilíbrio inerente à minha frágil condição e apenas consigo apoiar-me na ideia
matriz de uma apoteótica projecção emocional: vejo a cadeira e penso
a cadeira, em toda a sua magnificência. Tento visualizar o objecto-cadeira e a
sua imagem, a energia desses múltiplos significados como um caleidoscópio
infinito de fraquezas e forças em espiral infinita. Talvez assim consiga chegar
até ela, talvez assim consiga edificar uma construção não desmoronada.
*
O QUE CHEGA
é uma linha contínua de angústia, como obscuras
pinceladas de aguarela. De que cor? Não sei responder. Sei que a imagem de uma
cadeira não é “a cadeira”, é apenas uma representação do objecto que entendo
por “cadeira”. Compreendo que a cadeira e a sua imagem não podem coexistir
porque são duas coisas diferentes que não partilham o mesmo plano. Mas uma
cadeira nem sempre é uma cadeira e eu poderia, se quisesse, dar-lhe outro nome,
como “abraço” ou “poço”. Podia ser, por exemplo, uma intenção de lugar ideal
para o descanso, uma afonia do corpo que luta contra a gravidade. Ou um objecto
que leio com o corpo todo: este livro aberto. A matéria securizante que envolve
a minha substância, uma energia de contenção da minha própria energia. A
fronteira de uma essência cósmica.
*
IMAGINO
que a cadeira está ali à minha espera, palpável
e tridimensional. Comunicativa. A cadeira fala uma linguagem reconfortante,
macia; espera uma resposta que deve ser física – quer sentir o peso do meu
corpo através do acto de me sentar – mas o que lhe responde é o meu alívio, o
alívio do meu cansaço que agora descansa. A cadeira sente o meu sentimento de
satisfação. A cadeira é um objecto que sente o que eu sinto. Não reage, mas
aceita a minha presença. A cadeira onde me sento não é apenas uma cadeira. É o “outro”
que me acolhe na paisagem delirante do meu silêncio cansado. Estou a dormir ou
a sonhar?
*
EU E A CADEIRA
imbuídas de um sentimento mútuo e fraterno. A vida pode ser assim tão simples? De tão profundamente humano, ambas somos matéria viva que se funde numa planície onde corre um rio de sangue a transbordar as margens, indefinidamente, aguarelando a serenidade metafísica do silêncio. É claramente um sonho, tão real como a cadeira onde me sento. Ao canto do quarto, recordo e contemplo toda a minha existência passada e irreal. Lá fora, o futuro. Afinal, estou bem acordada e contemplo a vida que ainda irá passar por mim.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_318
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