Praia dos Beijinhos, Armação de Pera, Lagoa, Algarve
Quem, eu? Não, muito obrigada, não quero
mandar beijinhos para ninguém. Atenção, não há aqui qualquer azedume. Apenas
calor e tédio, o que já não é pouco, e me obriga a uma luta diária só para me
levantar da cama. E também para me deitar. Beijinhos, não. O tempo quente
interpõe-se entre mim e o mundo repleto de gente, de coisas, de emoções que não
me deixam descansar. É avassalador, assim como uma avalanche de manteiga
derretida. Tudo derrete: as pessoas, as coisas, as emoções, como lava entre
ruínas de cidades outrora imponentes. O verão é uma guerra muito mais
destrutiva do que os ventos atrevidos do inverno. São as coisas que se
abandonam ao tempo ou é o tempo que abandona as coisas? Entrego-me a esta
fraqueza derretida. Deslaço-me em dúvidas existenciais.
Contudo, escrever crónicas refresca-me.
Escrevo-as devagar, uma a seguir à outra, todos os dias, como uma laboriosa funcionária
da escrita. Um continuum do interior para o exterior que, num irónico
vice-versa volta para dentro e novamente ressalta para fora. Escrever ficção é
um acto de ironia, se tomarmos a realidade como ponto de referência, não
confundindo a minha realidade (conceito) com a minha verdade (percepção). Afirmo
o que não teve lugar, corroboro o que não aconteceu, porque quero e posso
fazê-lo. E, todavia, estou plenamente convencida que essas palavras são a minha
verdade. Devagar se vai ao longe na mentira. Pouco a pouco, as malhas da ilusão
vão moldando a minha vida. Qual é a vantagem? Escrever para quê, para quem? A
mão escreve para a outra mão. A mão escreve para os olhos que conduzem a
escrita. É um ensimesmamento, uma espiral viciosa. E é por essa razão que não
consigo parar de escrever. Parece a pequena doidice que surge a seguir à
ingestão de um jarro de sangria. Se não fosse alérgica ao álcool, escolheria
essa espécie de alienação criativa para escrever as minhas impressões do
quotidiano e aguentar as férias de verão. A loucura não é uma doença, mas sim
uma vivacidade de espírito que precisa ser preservada e, de preferência, sem
prestar atenção à opinião dos outros: uma arte “bruta”, digamos assim. Se é
formidável ou apenas estranho, nem tu nem eu seremos os seus juízes, mas sim o
tempo o tempo o tempo.
Atenção, há mais mundos. Temos, por
exemplo, o programa televisivo de Fernando Mendes – “O Preço Certo”. Aquilo é
um mundo que nada tem de real ou verdadeiro, a não ser o preço certo dos
artigos exibidos no concurso (mas tem que se contar com a inflação, a qual pode
alienar a aposta dos concorrentes). Ganhar ou perder serve, literalmente, para
matar o tempo e não tenho o hábito de concorrer. No entanto, através das
relações digitais que estabeleci na pesquisa da origem de uma divertida canção
que tenho ouvido nas estações de rádio, encontrei o que precisava para escrever
esta crónica.
“– Quer mandar beijinhos para alguém, minha querida?”, insiste o Fernando Mendes. Está bem, pronto. Quero mandar beijinhos “p’ra todos os que já não voltam mais e todos os que ainda estão para vir”. Está bem assim, ó Fernando? Vamos falar verdade a mentir, porque é verão, porque vale (quase) tudo, e “olarilólé olarilólei, beijar-te assim sabe tão bem!” E pronto, quem tem um “Fernando” para beijar, tem tudo para que o seu verão dê certo.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_400
Nota da autora: os excertos da canção “Preço Certo” de Pedro Mafama foram colocados entre aspas e os dois “Fernandos” citados são duas pessoas diferentes.
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