Assim como uma explosão lenta de humanidade
Oswald de Andrade (Brasil, 1890-1954) |
A insónia avassaladora, por fim, sucumbia. Tudo tem um fim. Mas antes, os olhos bem abertos na escuridão devoravam a melancolia como faróis no túnel da noite. Ela, a mulher morena, já não estava ali. A porta ficara aberta e ele fechou-a, sem olhar a solidão que teimava em entrar. Outra vez. Mas antes, ela estava ali: a mulher-boneca.
Sabes de uma boneca sem almofada nem pedestal. Apenas o perfume da
espera, a embrulhar um sorriso perfeito, suspenso no silêncio do quarto.
Permanece na comodidade do seu drama, num monólogo subtil da imagem que oferece
às paredes. Às vezes, uma sombra. Outras vezes, um brilho. E nunca a
respiração. A porta abre-se em ângulo obtuso e o mundo agora é outro, ainda
sombrio, mas partidário da emoção do que não aconteceu. Esse é o melhor momento
do dia. Quando o quarto cósmico se acende com as estrelas que vêm de longe, só
para enfeitar a boneca que se abandona ao destino surreal. Ela sabe o perigo
que corre. Não há lugar para as sereias nas camas dos amantes. Não existe
imunidade para os pecados amorosos. As pétalas frescas das rosas irão secar,
mesmo que a eternidade lhes seja pedida. Apenas o vício amassado e transformado
em prazer fácil no quarto quimérico. É só isso que sobra de cada vez que tu
sais por aquela porta. Mas depois as estrelas apagam-se no abandono do corpo
imóvel. Um sono intranquilo, entrecortado pelas palavras do poema que quer
sobreviver. Um sonho animado pelos efeitos especiais de uma boneca viva em pose
sedutora. Um auto-retrato celestial de uma boneca outra vez virgem, de cada vez
que tu voltares a entrar por aquele quarto. Num outro dia. Um leve pestanejar.
Sabes de uma boneca, mas ela não sabe de ti. E foi-se embora. Há outras bonecas
que abrem as portas das casas pelo lado de fora. Outras mulheres. Querem
descobrir o que está lá dentro. Oswald acreditava em todas elas, bonecas e
mulheres. No chão, a passadeira vermelha mostrava uma alegria de fim de mundo,
de apocalipse, de amorosa intensidade, mas, principalmente, de inteligência.
Vejamos: Oswald de Andrade era mais do que este homem. Era um ser capaz
de deglutir, engolir a cultura e transformá-la em algo muito próprio e
modernista. Desde o início da sua acção cultural, criava polémicas, respondia
às provocações surgidas e marcava uma posição em defesa da arte. Nesses textos,
questões estéticas relacionadas com questões políticas e sociais, em jornais e
revistas da época, permitiram consolidar um espaço de encontro para o
nascimento de uma nova estética – o movimento modernista – a partir de 1922.
Oswald de Andrade tinha pouco mais de 30 anos de idade.
Considera-se um povo pela sua cultura; é a expressão máxima de raça e de
momento a obra de arte que resiste ao tempo; passam os politiqueiros, passam os
tiranos que andaram de charola, passam os milionários e os agitadores de praça
pública, apaga-se a memória dos que foram grandes à força de trombeta – e ficam
os artistas. (Oswald de Andrade, Jornal do
Commercio, São Paulo, 16 maio 1920)
O homem, o escritor, o pensador, o mestre, proclamava independência
artística sobre o caminho da Independência política do Brasil de 1822, frisando
que independência não é somente independência política, é acima de tudo independência
mental e independência moral. (idem)
Ter coragem é perseguir a realidade e Oswald sabia que tudo o que fica
registado fala com o futuro. Por essa razão e para fazer cumprir o seu
propósito, escrevia sem parar. Contudo, o seu optimismo era relutante. A
linguagem assume um significado incompreensível e agonizante, o qual recusas.
Curar as feridas do pensamento, desvanecer as náuseas da emoção. A gordura
derrete e escorre por entre os pés dos ignorantes. Escorregam a cada passo e
afogam-se na sua própria vulgaridade. Cheiram a ranço. Tu já não estás ali
porque tu nunca estiveste ali. E não sucumbes. Pensas-te para regressares à
realidade que criaste em teu redor, como se a trama da banalidade se pudesse
transformar numa teia pacificadora. Mas não há filosofia que ilumine o negrume
da razão amaldiçoada. Ficas exausto e dormes durante um século dentro do
coração. Quando acordas, não sabes o nome da linguagem que te adormeceu, bem no
centro de um novelo de emoções. Depois, durante o dia, acumulas as tuas
dúvidas. Hoje, o poema escreve-se no fim. E, todavia, um poema escrito no final
da página abre uma fenda para deixar entrar o futuro da página seguinte, ou
seja, o princípio de qualquer coisa que mereça ficar na nossa memória, que
mereça um pensamento amplo, assim como uma explosão lenta de humanidade:
ERRO DE PORTUGUÊS
Quando o português
chegou
Debaixo de uma bruta
chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Oswald de Andrade (Brasil, 1890-1954),
in «Primeiro caderno de poesia do aluno Oswald de
Andrade», 1927
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_373
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