- Tanta gente, Judite -
Plano Nacional de Leitura, pnl.gov.pt |
Este
tempo
No
corpo e no espírito não existem espaços vazios. Tudo é preenchimento do
passado, memória, tempo. Há instantes que vêm ao de cima, como azeite na água.
Sujam, ficam por ali a contaminar a pureza do branco e não se misturam com
circunstâncias atenuantes. Na língua deposita-se o veneno, o sal, o rumor e a
transparência dos sentidos enquanto nas rugas do rosto ainda dorme a tua
infância.
Som
de não dizer nada
Mas
o que poderá ser mais eloquente do que uma lágrima? Rasgas a carne quando
viajas para fora do teu corpo. Quando deixas a porta aberta e entra o fervor
ruidoso das coisas pensadas. Uma eloquência tão calada, sem dizer uma palavra.
E, todavia, isso ainda não é o silêncio. Não, isso ainda não é o silêncio: é
apenas o teu umbigo a verter cascatas de lágrimas sobre o jardim do idioma
humano. O silêncio é uma flor discreta.
As
palavras e as vozes
Apenas
as asas são matrizes mentais dos sonhos, fundamentos alados que se deitam na
bruma, esse céu que para sempre te abandona numa inspiradora rajada de vento.
Tudo é secura no deserto. O tempo, andando submisso desde a paciência dos
séculos, estremece perante a visão de já não haver rio nem mar. E nós, talhados
na pedra em corpo presente, somos ornamentos da fonte dos desejos recolhidos no
espaço selado e separados da tormenta, pelos reposteiros altos como
cordilheiras. Estamos tão presos aos umbigos das horas num orifício onde o chão
se abriu em sequelas de pasmo e redundância. Tanta gente, Judite. Tantas vozes,
tantas palavras dementes, deitadas nas camas das enfermarias da civilização. E
sobretudo, ainda não somos capazes de voar ou sequer de matar a nossa obstinada
sede.
E
tempo?
Vai
a indiferença andando sobre quatro patas. Vai a demagogia crescendo a um ritmo
alucinante. Sentes que enlouqueces nas margens da pele. Sempre esta espécie de
pele como substância de fronteira nos espíritos em combustão comovida, aura no
limite da imagem inscrita, na vontade de querer voltar a entrar por dentro das
retinas. Os olhos tão abertos. Outra vez as sílabas incendiadas de dentro para
fora. A solidão exibe um encantador retrato de menina: é a matriz do tempo à
procura de onde fazer o corte mais límpido, a cicatriz mais invisível, a dor
mais efémera. No início de cada palavra, o peito aberto do fogo.
As
frases mortais
És
ainda tu, galgando espaços inquietos, adiando a melancolia. Não vais conseguir,
digo. Voltas a página, enquanto eu seguro, com firmeza, o feminino escrito. A
angústia desvia-se, deixa-te passar, mas segue-te de tão perto. E tu pensas que
a luz ilustra o corpo das mulheres martirizadas, torna-as visíveis na
escuridão. Voltas à página de onde nunca quiseste sair. Os olhos tão fechados.
Os dedos a desenhar a vida possível, a eternidade. A menina desapareceu no
sabor agridoce das palavras: parece que é merecida a sujeição à derrota.
Afinal, há frases que matam. A tua cabeça permanece ilegível na sentença de paz
forçada. Perdoa-me este dia que te imponho, esta comemoração sem brilho, este dia
de ilusão fora da vida.
A
escrita certeira da angústia feminina
O
corpo da linguagem é o único espaço que habitas: esperas ainda um espírito do
mundo que se escreva com outro alfabeto a disparar flechas através de um arco
esticado até ao limite do impossível. Quando existem feridas antigas não há
tempo para a cura e moldam-se arco-íris perfeitos para as diluir em poesia. Tanta
gente, Judite. Por exemplo, Adília.
Adília César
in Algarve Informativo nº 360 (2022) https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_360
in Antologia "Água Silêncio Sede" (2021, Poética Edições)
Nota
da autora:
Este texto resulta de um diálogo entre a escritora Maria Judite de Carvalho (1921-1998) e Adília César. Os itálicos transcrevem expressões da autoria de MJC retiradas do volume V das suas Obras Completas (Este Tempo, Seta Despedida, A Flor Que Havia na Água Parada, Havemos de Rir! – Minotauro, Setembro de 2019).
Fantástico este post. A fazer justiça a uma das grandes escritoras portuguesas, aqui acompanhada pela sábia intervenção de Adília César. Os meus sinceros parabéns pelo excelente resultado!
ResponderEliminarObrigada, Armandina, pelas tuas palavras. Maria Judite de Carvalho: fascinante e única. É preciso divulgá-la, à medida das nossas possibilidades.
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