Encontrando
aos pés uma pedra, nós não ficamos num tremor de emoção, a interpela-la em
violentas estrofes, à espera que uma voz de dentro responda revelando o
inefável mistério: homens positivos, as pedras utilizamo-las para levantar mais
o nosso muro ou apedrejar mais o nosso semelhante.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Wind", Vladimir Kush (Realismo Metafórico)
*
HÁ
UM ROSTO,
em
cada casa, que está à espera. Esperar é acreditar na possibilidade de uma ideia.
Uma ideia positiva, como um jardim em redor da casa. Um jardim de flores
coloridas como se fossem sentimentos do lar. Aquele rosto que espera, por
dentro de cada casa, sabe que algo vai começar a bater à porta, vai começar a
tocar à campainha. Vai conseguir entrar, à força. O rosto da casa sente o
sobressalto. Pressente o espasmo da invasão. Contudo, quem espera nada alcança:
é preciso fazer alguma coisa. É preciso iniciar a viagem, pisar as ruínas,
invocar um deus qualquer. Enquanto ainda não batem à porta. Enquanto ainda não
tocam à campainha. Enquanto ainda não entram à força. O rosto exibe a urgência
de olhar o jardim, de regar as raízes dos dias, pela última vez. Agora, é
preciso acautelar a vida.
*
ANTES,
eu
era a rainha das flores pequenas e passeava pelos canteiros, sulcando rugas no
rosto da casa. Alguém disse que eu estava destinada a escalar a montanha mais
alta, descobrir o tesouro mais valioso, sobreviver à tempestade perfeita. Mas
nada disso aconteceu. Lentamente, desviei-me dessa rota vitoriosa. A cada
passo, a cada olhar, havia uma assombrosa descoberta nas pequenas coisas que se
amontoavam em redor da casa: a fragilidade, o toque, a subtileza disso. Pétalas
levemente pousadas no chão, subjugadas à minha irresponsável podestade. Um dia,
coloquei uma coroa de flores e caminhei pelo mundo, de cabeça erguida. As
flores cresceram na minha imaginação e, ao fim de algum tempo, tornou-se
difícil caminhar com uma cabeça tão desproporcionada em relação ao corpo, assim
ampla e expansiva, como um balão a arder no drama que era agora a minha vida. O
corpo, a raiz. Ao mesmo tempo, o manto que me cobria, de tão intensamente
humano, dissolvia-se em fios de sangue. Alguém disse que isto se chamava inquietação.
A viagem, essa estranha substituta.
*
UMA
CABEÇA
a
arder no drama, vinda de uma voz de dentro. Muitas cabeças a arder no mesmo
drama: dúvidas, angústias filosóficas, limitações existenciais. E também medo.
Ao longe, há um coro de vozes monocórdicas que me impede de acordar. Quem sou
eu, assim derramada sobre o lençol branco e asséptico, nos confins da escura
gruta? Quem és tu, minha pequena flor a nascer no meio das pedras? Por entre as
sombras, outras sombras: o que vejo não é o que eu queria ver.
*
O
TEMPO
descaminha
a grandeza da minha viagem. O passaporte está em branco. A campainha não pára
de tocar. A porta abre-se repentinamente porque era impossível permanecer
fechada sobre o seu próprio rosto. A porta abre-se num grito, como se fosse uma
garganta estilhaçada. O rosto desfeito ainda quer olhar o jardim, ainda quer
regar as raízes dos dias. Ainda quer acautelar aquela vida. Ainda. A casa é
agora um lar apenas invocado, uma igreja sem deus. As suas ruínas são as minhas
memórias.
*
A
VIAGEM
é
uma estranha substituta para a vida. Uma esperança. Um número de telefone. Uma
fatia de pão. Um choro. Uma cama improvisada. Um pacote de bolachas. Uma
interrupção. Um soldado. Uma garrafa de água. Um vazio. Uma ferida. Um olhar
para o que ficou para trás, apenas um. Uma notícia. Outra notícia. Mais uma
notícia. E mais outra notícia. Ainda a mesma notícia. Um carrocel. Um discurso
incompreensível. Ou então ainda é um sonho. Olhar em frente. Mas.
*
EIS
A PORTA
que
eu tanto procurava. Descubro um outro mundo bem diferente daquele que me
parecia tão real, tão meu, tão íntimo. Tão estrangeiro. Aqui, neste mundo novo,
eu e os outros que me seguem já não somos caminhantes, mas sim o próprio
caminho. Sem rosto, sem casa, sem jardim. Somos pedras. Somos um país. Somos
outro país. E também somos uma comovente vergonha do espectador que assiste ao
noticiário das oito, sentado no seu confortável sofá. Nós – os caminhantes, as
pedras – olhamos o teu rosto, vemos a tua casa quando chega a última hora do
dia. Estás cansado? Então bebe um chá, apaga a televisão, veste o pijama. Deita
a tua consciência. Enquanto ainda não batem à porta. Enquanto ainda não tocam à
campainha. Enquanto ainda não entram à força. Que farás daqui para a frente com
as raízes dos teus dias?
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_330
Que texto precioso, neste tempo e em todos os que já foram e hão-de vir. Parabéns 👏
ResponderEliminarGrata, Armandina, pela tua leitura. Abraço.
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