Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
“Fuchsia,” 1938, raio x de flor, por Dr. L. Dain Tasker |
*
DECOMPOR
uma paisagem em sons breves. A vida. Ver
a paisagem nos chilreios das aves, nos silvos das serpentes, nos cascos das
bestas galopantes. Perseguir o paraíso como mentira veloz, à frente do tempo. Escrevo.
Decomponho palavras, separo-as das suas sombras. Corro atrás do tempo para que a
última hora não me alcance. As palavras agonizam, deitam-se sobre as esferas do
movimento da terra. Construo paisagens que se adivinham no ângulo do voo. Subitamente,
uma maçã cai sobre a minha cabeça. O tempo extingue-se no instante da epifania.
*
ALGUÉM
diz um verso de morte lenta enquanto as nuvens
organizam o alimento do espírito em ponto pé de flor. O sentido do discurso é
semelhante a um acontecimento clássico, mas qualquer coisa parece fora do lugar
e os verticilos florais tombam com o peso dessas memórias tão antigas. São
gotas de chuva ou lágrimas? Não sei responder, por tamanha ser a imensidão da
tragédia. A mulher reflectida conduz-me através do espelho do mundo, mas há uma
agulha muito fina e impiedosa que me prende ao cenário humano de onde nunca
mais consigo sair. Quem és tu, ó mulher reflectida? Talvez não sejas mais do
que uma criança, assim deturpada, assim incómoda na tua nobreza, apesar da
linha de sangue que escorre do coração, e vai manchando o vestido branco, e vai
indicando um caminho possível para o amor que nos inunda de luz. E.
*
TU
vinhas de um modo urgente de pousar telegramas
sobre os móveis e mantinhas-te encerrada na casa de vidro com as árvores de
papel em redor, em chamas. E, todavia, a clausura voluntária soava a falso,
fria como a neve. Não tenhas medo, esses súbitos são as páginas da
tua vida por descobrir – digo neste silêncio maternal, quando sabemos que
tudo irá recomeçar. Nada mais existe além da superfície lisa da pele da casa,
nada mais existe além do rio de sangue que inunda a tua cabeça. Coragem,
procura a serenidade disso. O sonho lateja, forte como um diamante. Resplandecente
como ouro, deita-se sobre a página vazia que espera contigo a possibilidade da
escrita. Agora, escrevo para poder correr à frente do tempo, escrevo para que o
tempo não me alcance. Falo comigo mesma, do alto desta solidão de escada
íngreme, quase a cair. É este o meu testamento. É esta a minha imortalidade. É
este o meu desafio: descer todos os degraus sem nunca os ter subido. A flor
silvestre como deus da natureza conhece a linguagem da infinitude, por ser tão
efémera, por ser a totalidade da perfeição aprisionada naquele perfume, naquele
peso de um deus das pequenas coisas. Levo-te comigo e ordeno-te que também
escrevas. E, todavia, tu não queres ir: queres ficar ali, a sangrar, enquanto
povoas os socalcos das nuvens com os tons frios que consegues imaginar. Gostas
do tormento da solidão, do equilíbrio entre margens tão distantes como o sol e
a terra. E.
*
SE EU
te ensinar tudo o que sei, poderás perdoar-me,
à distância de um século, à distância de um milénio? E depois irei embora para
aquele longe de onde já não possa voltar atrás. Repara, esta escrita ainda não
é linguagem, é apenas um processo doloroso de cair nas ravinas do pensamento.
Repetes tantas vezes as mesmas palavras, tu, mulher reflectida, tu, percepção
inacabada que não entendes o idioma que acabaste de inventar. Tu, que não és
capaz de entender a flor no espelho. Tu, que partes o espelho para ficares em
silêncio eterno. Basta! A paisagem escurece com as sombras das palavras e
repete comigo: basta!
*
ASSIM
será. De sombra em sombra, outras palavras estarão
sujeitas a escrutínio. Seremos assolados por um novo caos, porventura mais
meritório do que o que foi, entretanto, extinto. Outros diamantes, outros
ouros, outras flores silvestres, outros pesos no peito apertando o coração: por
exemplo, tu, a mulher reflectida num espelho mais inteiro e progenitor. A vida sob
renovada forma, depois de abandonarmos tudo o que nos foi dado, tudo o que se
perdeu. Será que Deus nos vai perdoar?
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_326
Parabéns pela sua escrita. Abraço. Ana Maria Oliveira
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