O
embarque fez-se com a confusão habitual, complicada com os embaraços de um mar
agitado: os barcos iam cheios de gente, uns de pé, outros sentados na borda,
roçando pela água, outros gravemente equilibrados sobre a acumulação pitoresca
das bagagens: ria-se, fulminava-se a organização e a polícia das festas,
gritava-se um pouco quando os barcos pesados oscilavam mais inquietadoramente.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Adoro-te" - Fotografia de Adília César, janeiro 2022, Faro |
*
A
IDEIA PRINCIPAL
navega
no mar do pensamento e a sua sobrevivência depende do clima: períodos de sol
com momentos de felicidade extrema; existência de nuvens suaves com abertura do
coração a surpresas; céu muito nublado com possibilidade de choros durante a
noite; aguaceiros e períodos de espírito vagamente inquietos; rajadas de vento
forte com existência de silêncios; mente com poucas abertas e ciclos contínuos
de esquecimento; eclipse total. A meteorologia psicológica muda a cada dia
através de ciclos de intermitências emocionais registados em gráficos
incompreensíveis. Desengane-se quem julga que há um mapa para o percurso
mental.
*
O
CAMINHO
não
se faz apenas caminhando, mas também na análise da descoberta de cada passo. E
parte-se cada pedra em que tropeçamos, para construir alguma coisa que valha a
pena. Erguem-se canteiros de flores, muros, edifícios ou uma ponte bem sólida,
a minha construção preferida, por ser tão complexa, por denunciar uma utilidade
metafórica. Por vezes, não é possível ultrapassar o obstáculo e é preciso
voltar atrás, mesmo que já tenhamos chegado longe. Caminho pela cidade. Aqui
não há pontes, apenas pressinto passos em falso. Sou obrigada a percorrer uma
distância considerável porque não há lugar para estacionar o carro, a não ser
ali, naquela praceta escondida e longe de tudo. Procuro uma esplanada
minimamente apresentável e convidativa para tomar um café. O sol de inverno é
morno, contagia-me com a sua alegria amena. “Eu caminho este caminho pelo
caminho”: “caminho” é verbo, substantivo e também advérbio de lugar, o que me
deixa divertida ao estabelecer conexões mentais meramente recreativas. De
repente, depois de repetir a mesma palavra tantas vezes – “caminho” –, ela
deixa de ter significado e torna-se desconhecida na minha paisagem lexical.
Sorrio: hoje é dia de inclinar a cabeça para um lado mais infantil. Apetece-me
correr, mas tal não é possível porque estou de salto alto e uso um chapéu de
feltro; entre os dois adereços, um vestido justo e uma capa a condizer. Ao
contornar um contentor do lixo, vejo aquilo.
*
AQUILO
parece
ser uma oferenda destinada a um “puto” qualquer. Exibe uma legenda explícita, negra
sobre o fundo branco, inscrita no plano sentimental da pessoa que a fez com as
suas próprias mãos e a ofereceu a outra pessoa que, por certo, fará parte da
sua colecção especial de afectos – o “puto”. Há outras palavras pintadas em
linhas estratégicas do plano bidimensional disponível, mas não consigo decifrá-las.
Contudo, à primeira vista e tendo em atenção o local onde o objecto se encontra
– junto do contentor do lixo – a dádiva não foi muito bem acolhida pelo
destinatário, o “puto”. Quem será o “puto”? Alguém insensível, creio.
*
O
LABIRINTO
arquitectado
pelos pensamentos é sempre sentimental. As circunstâncias que impelem ao acto
e, em consequência dele, comovem ou não o outro, são sempre emocionais. Mas a
razão estabelece-se de forma tortuosa e nem sempre o resultado é o esperado. O
emissor “adora” o “puto”, e essa adoração surpreende pelas formas, cores e
tempo destinados à criação intencional, única, irrepetível e intransmissível de
uma tela decorada com desvelo. Contudo, o outro, o “puto”, nem por isso fica
surpreendido, e dá à mensagem um destino cruel, apesar dos “Mil Parabéns”. Quantas
dimensões humanas tem o plano dimensional da tela? É possível que um objecto
carregue um peso demasiadamente humano? Até eu, que não conheço nem quem dá nem
quem recebe, vejo o sentimento de desprezo, ali, deitado no chão: tem forma e
cor bem definidas (embora carregadas de sombras). O milagre da borboleta sobre
a flor não ilumina aquele transtorno.
*
É
PRECISO
acalmar
o mar, varrer as misérias humanas e as boas intenções que não cumprem o seu
papel. É preciso estar mais atento às necessidades dos outros. Os inúmeros
objectos que eu compro, os presentes que eu ofereço, servem de consolo a quem? A
mim ou a ti? Acumulamos coisas, especulações e desejos na bagagem festiva e
embarcamos na vida como se não houvesse amanhã. Mas dezembro já ficou lá para
trás e neste tempo de rescaldo do último Natal, já prevejo novas inquietações
no planeamento do próximo.
*
TIRO
A FOTOGRAFIA
daquela
visão algo obsessiva que parece chamar por mim e imediatamente tomo a decisão
de escrever estas notas contemporâneas. O impulso inspirador acontece-me, de
vez em quando. A representação fotográfica da tela sopra-me uma história ao
ouvido que parece plausível, dadas as patéticas circunstâncias. O protagonismo
é dado ao destino das palavras “adoro-te, puto”. Sim, “puto”, eu também te
adoro! Embarquemos neste novo ano com amor que, não bastando por si só, dá uma
preciosa ajuda para acalmar as inquietações da vida. Cuidemos do futuro, com
serenidade e alguma urgência. Ou seja, sem reticências nem pontos de interrogação.
*
DE
REPENTE,
ocorre-me
uma ideia estonteante: e se o “puto” nunca tivesse recebido a tela? E se quem a
elaborou não lhe deu o devido valor e preferiu largá-la no lixo, obstruindo o
caminho lógico da intenção-acto-consequência-desalento? Ah, assim o
“puto” nunca saberia que era “adorado”. Ah, mas assim a crónica seria outra.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_322
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