Eça de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra
póstuma)
*
FECHO
os
olhos, e o pensamento acende-se. A luz desliza pela coluna vertebral e
espalha-se pelos órgãos internos, como uma sensação de dor a preencher as
células. A pele fica às escuras. Fecho os olhos. Abdico de todos os episódios
de transtorno, essas sombras de intensidade ainda média. Fecho os olhos, mas
qualquer semelhança com a noite é pura coincidência.
*
ACORDO
às
08:38. Não é a primeira vez que isto acontece. Acredito que toda a organização
do universo se baseia na elaboração de uma estrutura matemática, através de um
padrão repetitivo, sem erro nem desvio. O meu corpo acorda às 08:38. É domingo.
Não tenho a certeza se existe alguma obrigatoriedade de funções para o dia de
hoje: talvez ficar na cama e dormir, mas decido acordar o espírito. Começo a
ler um livro escolhido ao acaso. Leio epígrafes sem consequências. O livro é
desinteressante e abandono a leitura. Não tenho forças para escolher outro, e
adormeço. São 09:00.
*
OS
DESVIOS
foram
inventados pelos humanos – as estradas de cimento ao longo da terra; os
apartamentos sobrepostos sobre o lugar de ninguém; as barragens a impedirem o
movimento dos caudais que antes eram livres; as pontes entre margens perdidas
no horizonte. E as máscaras de contenção da doença. Sejamos práticos: afinal,
já não somos humanos, transformámo-nos em “seres potencialmente pandémicos”. Temos
sucesso em todos os domínios de destruição e o nosso mantra é consumir e apagar
todas as pistas de arrependimento; dizer adeus ao futuro é o novo lema.
*
OS
ESPECIALISTAS
trabalham
por turnos. Cada um tem a sua teoria e cada teoria tem o seu contrário. Este
processo dialéctico desenvolve-se ao longo de um período de tempo
pré-determinado. Às vezes, vão trabalhar todos ao mesmo tempo. Logo, os especialistas
não se entendem, não coordenam os seus tempos de antena e confundem os
espectadores. Criticam-se mutuamente e invalidam teorias que acabam por
nidificar no caos informativo. O que resta?
*
FAÇO
DE CONTA
que
a tolerância é um valor a ser resgatado ao lixo ético a que me vou habituando.
Sou tolerante em relação às atitudes dos outros e que ganho eu com isso? Sou
tolerante com a corrupção, a demagogia e a restrição velada dos meus direitos? Sou
tolerante em relação aos sintomas paradoxais das notícias? Não, não posso ser
tolerante: «Às vezes, é preciso desobedecer.» (Salgueiro Maia)
*
ACREDITAR
em
contos de fadas pode ser fatal. O Lobo Mau anda por aí. A Bruxa Malvada está à
espreita. O Dragão insiste no fogo pelo fogo. E a Fada Madrinha é uma espécie
em vias de extinção. O que resta? De repente, o Príncipe Encantado surge numa
esquina do dia, a trautear uma canção requisitada nos termos de serviços
mínimos, tendo em conta a evolução da espécie humana: É o Fungagá/ Fungagá
da Bicharada/ É o Fungagá/ Fungagá da Bicharada!
Não
– é a palavra mágica.
Criticar
– é o verbo sábio para acolher o livre arbítrio. Porque haveria de querer a
barbárie de “regressar à normalidade”?! Porque haveria de me sujeitar às
mentiras de outrora?
*
EU
QUERO
é
ser feliz, de dentro para fora. Ser outra vez humana no avesso das coisas. Ser
humana como nunca fui antes. Acordo às 08:38. Ainda é domingo? Apetece-me
criticar abertamente os objectos do meu desprezo, mas hesito e nego o impulso,
por agora. «No catálogo dos direitos humanos não existe o direito
a não ser ofendido; se existisse, ninguém poderia dizer ou escrever uma palavra.»
(Salman Rushdie)
E
calo-me. Por agora. São 09:00. O tempo que passou tentou demitir-me das minhas
funções, mas não conseguiu.
O
que resta? Tenho a resposta na ponta da língua: sei o que não quero.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_300
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