Adília
César nasceu no século passado, em Lagos, Portugal. Só tem
uma ruga – a da linha de escrita. Se não se chamasse Adília César o seu nome
seria Baudília ou Monadília, e depois de ter descoberto a Área Branca perfeita e imaculada, naturalmente
chamar-se-ia Fiamadília. Adília é singular – o seu ser está na primeira pessoa.
Tem uma voz parecida com os poemas que escreve e ama de olhos bem abertos.
Nunca escreveu uma ode, nem quando está em viagem, mas é capaz de despertar a
Europa num só verso. Adília é o lugar-corpo da poesia com uma agulha
no coração. Está bem acordada durante o dia e não toma Xanax; talvez por
isso o seu lado negro esteja sempre à espreita, em lúcido delirium. Detesta vermes e poluição
sonora. Quando tropeça e cai, levanta-se muito rapidamente para ninguém ver: é o
que se ergue do fogo. Nunca recebeu postais de férias nem telegramas com
notícias amargas. Adília podia ser uma Deusa: tem um discurso sonhador e
escreve poemas contra o tempo o tempo. Desde criança que ela deseja ser uma
Sereia coberta de pérolas, mas a Ria Formosa ainda não lhe fez a vontade. Em
seu redor, o gelo vai derretendo. Adília, essa palavra nocturna e negra. É fundadora da Sociedade dos Espaços
Vazios Entre As Palavras.
Linha de Escrita
a efemeridade definitiva de narrativas diversas e controversas
sexta-feira, 1 de setembro de 2023
AUTO-BIOGRAFIA POÉTICA
BOM APETITE!
(Fernando Pessoa, excerto do poema Tabacaria,
1928)
Foto de Adília César, Faro |
A noite quente entranhava-se na pele e
quase ardia. Ela, a mulher cansada e submersa no tédio, sonhava por dentro do
sonho, sem querer acordar. O cenário parecia desconhecido e surreal, como uma
casa torta ou uma antologia de percepções de medo e inquietação. As paredes
rachadas, o chão inclinado, o tecto absolutamente inacessível. Tropeçava
frequentemente no mesmo sofá atafulhado de panos: lençóis, almofadas, roupa de
homem. Ao fundo do corredor, uma porta feita de ossos. Ela tinha uma respiração
ofegante de quase asfixia. Os dentes rangiam, demonstrando uma raiva contida ao
longo dos dias de férias. De vez em quando, as mãos e os pés pareciam avisar
sobre qualquer coisa prestes a acontecer, um perigo iminente a latejar. O sonho
tão lúcido. A porta de ossos abriu-se lentamente, a ranger, como nos filmes de
terror em que se caminha pelas ruas e se tenta estabelecer conversas
filosóficas com as pessoas sobre os problemas graves que assolam as nossas
vidas. Pode ser um autêntico pesadelo.
No sonho dentro do sonho o tempo regressou
ao fim da tarde do dia anterior. O tempo a fazer o seu trabalho: presente,
passado e sonho. Ela tinha uma perfeita consciência deste momento, único e
intransmissível, e acalmou-se de uma forma pré-estabelecida, como sempre
acontece quando a sensação da realidade não muda, mas ao mesmo tempo é
absolutamente necessário mudá-la. Ou seja, antes da transição para a vigília,
ela teria de encontrar a solução para o seu problema – a presença dele. Ele, o primo
chegado à sua casa no Algarve, há precisamente um mês. Um mês. Todos os anos o
primo telefonava a dizer quando chegava, geralmente com um dia de antecedência.
Chegava e instalava-se no sofá da sala. A casa dela transformava-se num
acampamento de verão. Outra vez.
Mas este era um dia muito especial – o
último dia de férias de ambos (que alívio para ela…). Para assinalar a data, o
primo tinha decidido fazer o jantar, uma perna de perú estufada, mas ela não a
tinha tirado do congelador, para implicar, assim como uma pequena vingança. Ele
não se irritou. Na verdade, nada parecia contribuir para lhe estragar as férias
– aqueles dias todos de agosto passados na praia, a banhos de sol e de mar, com
cama e comida de graça, roupa lavada, duches, aftershave, refrescos e
festas de verão. O primo iniciou os procedimentos necessários ao único gesto de
boa vontade de que era capaz, assim como uma manifestação de agradecimento
pelas maravilhosas férias que a prima lhe tinha proporcionado. Entre
parêntesis, ela pensou que ele podia ter comprado uma perna de cabrito ou
borrego, sempre era mais gourmet, mas enfim, ficou-se pela perna vulgar
de perú talvez para não gastar demasiado: bem sabemos que a vida custa a todos,
principalmente aos primos nortenhos que não gastam um tostão em férias no
Algarve. Ele dispôs todos os ingredientes em cima da pequena
bancada, bem alinhados, como uma linha de montagem. Azeite, cebola, alho, pimentão,
cenoura, louro, sal. E a perna de perú, ainda congelada. De faca em riste, o
primo cortava a cebola e o alho, para fazer o refogado, bem regado com o azeite
e decorado com a cenoura e a folha de louro. Tens a mania que és bom cozinheiro,
pensou ela. Fazes sempre isto, cozinhas pacientemente, sujas a cozinha toda,
para eu depois limpar. O primo falava ininterruptamente e ela fazia de conta
que ouvia, sem responder, deambulando pela cozinha de ossos, enquanto sonhava
tantas e ainda outras maneiras de o calar.
Pitéu. Ele estava sempre a usar esta
palavra. Que palavra horrível. Parecia um esgar de arrogância. Continuava a
falar, explicando pela milésima vez como se cozinhava uma bela perna de perú,
mas nem lhe distinguia as palavras, só via o abrir e o fechar da boca, parecia agora
um peixe fora de água.
Prima, passa-me aí outra cenoura!
Ela levantou-se com alguma dificuldade. Tantas
férias passadas com o primo, ano após ano. Que tédio, que cansaço, que raiva. O
sonho pesava dentro do sonho. Abriu a porta do frigorífico e a frescura
alertou-a para a vida toda que tinha à sua frente, em todos os verões do futuro.
Voltou-se lentamente e viu a perna de perú ainda meio congelada, forte, como
uma arma carregada de possibilidades criminosas. Pegou nela com todas as mãos
de que dispunha – eram mais de mil – e levantou-a no ar, bem alto até à ao
lugar onde os pássaros voam, e aterrou-a na cabeça dele. Uma pancada. O primo
tremeu um pouco como a gelatina no pires, caiu lentamente e ficou dobrado
naquela posição estranha da morte, com os olhos abertos. De seguida, a prima lavou
a perna de perú, colocou-a no tacho e polvilhou-a com um pouco de sal, não
muito, no verão anterior tinha ficado salgada. Ficou a olhar para a carne até
que ficou bem passada, durante duas horas. Depois, apagou o lume, tapou o tacho
e ligou ao 112, para avisar que a sua casa tinha sido palco de um acidente
fatal. Acordou com as sirenes da ambulância e da polícia, com a sensação real
de que este seria o melhor verão da sua vida: aventureiro, misterioso,
sibilino. Dramático. Os olhos abertos do primo diziam exactamente o mesmo. Bom
apetite, primo!
Serenamente, ela, a prima, a mulher
rejuvenescida, abriu a porta às autoridades e reiniciou o sistema de
dependência do tabaco, acendendo o primeiro cigarro da sua vida: na verdade, ela
nunca tinha fumado, mas era completamente viciada em nicotina, naquele sonho
dentro do sonho.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_402
sábado, 26 de agosto de 2023
SEI O QUE FIZESTE NO VERÃO PASSADO
Sei o que fizeste. Com a devida
antecipação, a bruma das férias envolveu-te delicadamente e estacionou em todos
os teus poros. Assinalaste os dias no calendário do mês de agosto, pesquisaste ilhas
paradisíacas da Ria Formosa e horários de ferrys. Compraste um novo fato de
banho, rosa choque, provavelmente influenciada pelo filme da Barbie. Leste com
atenção o teste de bronzeadores e protectores solares, realizado pela Deco
Proteste; costumas optar pela Escolha Acertada, mas desta vez resolveste subir
a parada, em correlação directa com as tuas expectativas de férias, e
adquiriste o Melhor do Teste: Piz Buin Tan & Protect Tan Intensifyng Sun
Spray 30 SPF – para uma pele perfeita. Entretanto, as férias acabaram. Desta
vez esmeraste-te: que comportamento tão original, esse de morar no Algarve e
não ir à praia…
Sei o que fizeste. Emergiste do fundo da
fonte, como uma sereia. A tua mítica personagem destoava apenas nas barbas
brancas. Quer dizer, barbas brancas numa sereia é um pouco inusitado, mas
veem-se coisas piores quando saímos à rua. Ainda ontem vi no Jardim da Alameda
um homem muito musculado vestido de saia e blusa de alças, abanando-se
freneticamente. Andou de um lado para o outro e depois perguntou para quem o
quis ouvir, num tom vocal grave de barítono: “estão a rir de quê?” E foi-se
embora de rompante, tal como tinha chegado. Uma espécie de sereia dos jardins,
a bem dizer. Sedutora e confiante, tal como eu imaginaria a Musa das Três Fontes
Secas, caso ela existisse.
Sei o que fizeste. O Festival F chamou por
ti. Ou melhor dizendo, cantou para ti. Não sabias a que palco havias de te dirigir,
mas seguiste a multidão eufórica que subitamente se ramificava e logo de
seguida parecia diluir-se noutra massa humana, como uma geografia ondulante própria
dos lugares do entretenimento. É uma alegoria repetitiva, como os discos
riscados que tocam indefinidamente o mesmo fragmento musical. Os espectadores têm
copos na mão e bebem líquidos coloridos que lubrificam veias e artérias. Ficam
coloridos por dentro e pálidos por fora. Tu és alérgica ao álcool e bebes Coca
Cola, comprada a muito custo depois de uma longa espera em fila, com pessoas
coladas umas às outras como as lagartas do pinheiro. Tens sede e bebes três
golos em três tempos num modo automático de sucessão rápida, numa tentativa de
te adaptares à grande engrenagem de gente alegre e excitada. Sentes-te uma peça
da frenética máquina de consumo que alimenta a sociedade do espectáculo. Arrotas.
Que falta de educação. Já não tens idade para arrotar em público.
Sei o que fizeste. Tomaste uma decisão e passaste da teoria à prática. Há atitudes drásticas que são perfeitamente compreensíveis, porque as aves fazem o que querem. Voam por cima dos muros e vedações do jardim e atravessam a estrada. Pousam nas varandas do prédio. Vocalizam o seu é-ó tão característico a qualquer hora do dia e da noite. Ora essa, as pessoas que moram nas redondezas não gostam de ser incomodadas por aquele ruído animalesco e dissonante. As pessoas preferiam que as aves tivessem um interruptor – switch on switch off – para se ligar e desligar o pupilar dos pavões, permitindo-lhes atividade vocal apenas durante as horas consideradas adequadas. No abrigo, a pavoa quer chocar os seus oito ovos, mas tu destróis sete, deixando-lhe apenas um filho único. Com alguma sorte, crescerá saudável e belo, tal como os seus irmãos e irmãs seriam. Afinal, já há muitos pavões e pavoas no jardim, a incomodar as pessoas nas suas residências pagas mês após mês, a tanto custo, com taxas de juro inacreditáveis. Não é admissível que essas pessoas sejam incomodadas pelas magníficas aves que habitam aquele lugar desde o século passado. Aquele chão, aquelas árvores mais antigas que qualquer um de nós: esse “absoluto que pertence à terra” (diz Hermann Broch). A pavoa olha o que fizeste, incrédula e serena, sabendo que tem uma tarefa a cumprir: chocar o ovo do seu filhote. O pavão, nada subtil, solta um é-ó bem sonoro, como de costume, e voa para longe. O tratador apanha uma mão cheia de penas que os pavões deixam cair pelo chão e oferece-as ao turista que se aproximou da porta do abrigo, trocando-as por algumas moedas. Ao fim do dia conseguiste ir até à praia e deste um mergulho no mar que é da cor das penas dos pavões que nunca iriam nascer. Sentiste a tristeza da concha vazia que se afunda para sempre. Mudam-se os tempos, ou melhor dizendo, as penas, e não se mudam as vontades. Os tempos… esses são de miséria humana. Ah Camões, se tu visses com o teu olho o que eu tenho visto com os meus dois olhos...
É verão. Acontecem estes e outros
deslizamentos de terras, incêndios, inundações, guerras. É verão e os fantasmas
dos verões anteriores chamam por ti, enquanto secam as três fontes do jardim e
morrem os pavões. Há areia a corromper a engrenagem humana. Tudo muda, menos a
tua sonolência veranil. É quase noite, mas ainda será uma noite de verão: é-ó,
a terra arde, é melhor chamar os Bombeiros.
Adília Cesar, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_401
sábado, 19 de agosto de 2023
- QUER MANDAR BEIJINHOS PARA ALGUÉM, MINHA QUERIDA?
Praia dos Beijinhos, Armação de Pera, Lagoa, Algarve
Quem, eu? Não, muito obrigada, não quero
mandar beijinhos para ninguém. Atenção, não há aqui qualquer azedume. Apenas
calor e tédio, o que já não é pouco, e me obriga a uma luta diária só para me
levantar da cama. E também para me deitar. Beijinhos, não. O tempo quente
interpõe-se entre mim e o mundo repleto de gente, de coisas, de emoções que não
me deixam descansar. É avassalador, assim como uma avalanche de manteiga
derretida. Tudo derrete: as pessoas, as coisas, as emoções, como lava entre
ruínas de cidades outrora imponentes. O verão é uma guerra muito mais
destrutiva do que os ventos atrevidos do inverno. São as coisas que se
abandonam ao tempo ou é o tempo que abandona as coisas? Entrego-me a esta
fraqueza derretida. Deslaço-me em dúvidas existenciais.
Contudo, escrever crónicas refresca-me.
Escrevo-as devagar, uma a seguir à outra, todos os dias, como uma laboriosa funcionária
da escrita. Um continuum do interior para o exterior que, num irónico
vice-versa volta para dentro e novamente ressalta para fora. Escrever ficção é
um acto de ironia, se tomarmos a realidade como ponto de referência, não
confundindo a minha realidade (conceito) com a minha verdade (percepção). Afirmo
o que não teve lugar, corroboro o que não aconteceu, porque quero e posso
fazê-lo. E, todavia, estou plenamente convencida que essas palavras são a minha
verdade. Devagar se vai ao longe na mentira. Pouco a pouco, as malhas da ilusão
vão moldando a minha vida. Qual é a vantagem? Escrever para quê, para quem? A
mão escreve para a outra mão. A mão escreve para os olhos que conduzem a
escrita. É um ensimesmamento, uma espiral viciosa. E é por essa razão que não
consigo parar de escrever. Parece a pequena doidice que surge a seguir à
ingestão de um jarro de sangria. Se não fosse alérgica ao álcool, escolheria
essa espécie de alienação criativa para escrever as minhas impressões do
quotidiano e aguentar as férias de verão. A loucura não é uma doença, mas sim
uma vivacidade de espírito que precisa ser preservada e, de preferência, sem
prestar atenção à opinião dos outros: uma arte “bruta”, digamos assim. Se é
formidável ou apenas estranho, nem tu nem eu seremos os seus juízes, mas sim o
tempo o tempo o tempo.
Atenção, há mais mundos. Temos, por
exemplo, o programa televisivo de Fernando Mendes – “O Preço Certo”. Aquilo é
um mundo que nada tem de real ou verdadeiro, a não ser o preço certo dos
artigos exibidos no concurso (mas tem que se contar com a inflação, a qual pode
alienar a aposta dos concorrentes). Ganhar ou perder serve, literalmente, para
matar o tempo e não tenho o hábito de concorrer. No entanto, através das
relações digitais que estabeleci na pesquisa da origem de uma divertida canção
que tenho ouvido nas estações de rádio, encontrei o que precisava para escrever
esta crónica.
“– Quer mandar beijinhos para alguém, minha querida?”, insiste o Fernando Mendes. Está bem, pronto. Quero mandar beijinhos “p’ra todos os que já não voltam mais e todos os que ainda estão para vir”. Está bem assim, ó Fernando? Vamos falar verdade a mentir, porque é verão, porque vale (quase) tudo, e “olarilólé olarilólei, beijar-te assim sabe tão bem!” E pronto, quem tem um “Fernando” para beijar, tem tudo para que o seu verão dê certo.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_400
Nota da autora: os excertos da canção “Preço Certo” de Pedro Mafama foram colocados entre aspas e os dois “Fernandos” citados são duas pessoas diferentes.
sábado, 12 de agosto de 2023
A SEGUIR À PRIMAVERA VEM O VERÃO
"S’il n'était pas mort il ferait envie",
(Se ele não estivesse morto, faria inveja)
In “La Mort de La Palisse”*,
canção militar em honra do Marechal de La Palisse
A seguir à primavera vem o verão. Bem sei, dito assim desta maneira óbvia, é uma afirmação sem interesse, assemelhando-se a uma das ditas verdades de la palisse, tão abundantes nos discursos tanto das pessoas simples como das complexas. Ah, meu caro Jacques de La Palisse, meu corajoso Marechal de França que morreste na Batalha de Pavia!... Em honra das tuas conquistas e subsequente popularidade cantaram-se glórias dignas de memória! E tantas vezes se cantaram as afamadas cantigas que estas sofreram subtis transformações, sendo a mais célebre a seguinte, por ter dado um novo e definitivo sentido ao teu nome:
"s'il n'était pas mort il (ƒerait – serait) en
vie"
(se ele não estivesse morto faria/estaria vivo)
Com
a sua existência e morte aprendemos que é lícito enunciarmos evidências e
truísmos que toda a gente compreende. Existe, portanto, um mundo antes de La
Palisse e outro, completamente diferente, depois de La Palisse: eis 1525 – o
ano zero da argumentação, por assim dizer. Então, vamos a isto, às lapalissadas
da vida contemporânea!
É importante repetir que esta estação do
ano a que demos o nome próprio de Verão surge todos os anos a seguir à
primavera, para me convencer da efervescência que me aguarda, sem piedade nem salvação.
É um inferno mascarado de paraíso e Socorro é o seu nome do meio (para
conhecerem o apelido desta entidade de calendário terão de ler a minha crónica
até ao fim). Na verdade, podia limitar-me a usufruir do descanso, vestir roupa
leve, beber água fresca, sair apenas à noite depois do sol desaparecer, ler
livros atrás de livros, ver televisão, e dormir, dormir muito para não sentir o
calor a dobrar o ar. Podia tentar queimar a época veranil com atividades mais
ou menos inócuas, mas isso não seria viver a vida, sabendo também que o
tempo que passa não volta mais (olha, que giro, começaram as lapalissadas).
O que posso então fazer para justificar a minha existência face à recorrência
desta estação do ano da qual não posso fugir?
Para mim, o verão está ligado a morte: por
exemplo, as pessoas morrem afogadas ou em acidentes de viação com mais
frequência do que noutras épocas do ano; as barragens baixam assustadoramente o
seu nível de água; a erva, outrora verde e apetecível transforma-se em pasto
seco, com serventia apenas para alimentar os incêndios; ai, que medo, os
incêndios, incêndios a arder por todo o lado, que horror. Resta o mar: o
mar azul que reflecte o azul do céu, o céu azul que reflecte o azul do mar.
Bolas, mais outra redundância.
Tenho que ter cuidado. Não tarda, estou a
cair num buraco linguístico perigoso com um nome de peste contagiosa: a tautologia.
Parece que tudo o que afirmo é uma falácia, nada acrescentando ao que já foi
dito antes. A minha argumentação não apresenta saídas à sua própria lógica
interna. Em favor da minha débil capacidade de raciocínio, tenho a dizer em
minha defesa que a culpa é do verão! Tenho que ter cuidado, tudo o que está
a mais sobra. Bolas, mais outra lapalissada!
Este texto adoeceu, está contaminado pelos
pleonasmos do quotidiano. Estou muito preocupada. Subo para cima e
desço para baixo as escadas da minha casa, sem parar; encontro uma porta
que não conhecia e entro para dentro; assusto-me com o escuro da minha
mente e saio para fora à procura de um consenso geral, de uma regra
concreta para me tornar a protagonista principal antes do amanhecer
do dia. Mas só me acontece a lembrança de um passado, apenas um
único embora dividido em duas metades iguais, cheias de detalhes
minuciosos que procuro encarar de frente para retornar de novo
àquela expectativa futura, e repetir outra vez a retrospectiva
passada, para poder planear antecipadamente a última versão
definitiva da minha argumentação sobre este verão que veio a seguir à
primavera. Pelo caminho, abro um parêntesis, pois descobri o nome completo
desta malfadada estação do ano: Verão Socorro de La Palisse. É um bom
pseudónimo de escritor, não vos parece?
Para não perder o fio à meada, registo o
óbvio: tudo o que escrevi nestas páginas está carregado de lapalissadas,
tautologias, redundâncias, pleonasmos. Funcionam assim
como os batuques aleatórios no tambor: pum, catrapum, pum. Uma chatice. É
difícil falar ou escrever sem estas figuras de retórica. Como decerto sabemos,
o pleonasmo é uma doença linguística e, deste modo, o melhor seria
apagar tudo, mas… “o que escrevi, escrevi” (a frase entre aspas está atribuída
a Pôncio Pilatos, mas a expressão veio mesmo a calhar e não resisti a usá-la). E
agora, o que resta? Tenho uma ideia. Para salvar esta crónica vou deixar-vos
alguns pleonasmos literários, inteligentes, ditos por criadores de
qualidade artística indiscutível. Atenção, não são vícios de linguagem, mas sim
pleonasmos literários:
“O cadáver de um defunto morto que já
faleceu” (Roberto Gómez Bolaños);
“E rir meu riso” (Vinicius de Moraes).
É isso mesmo, Vinicius, deixemos de lado a tenebrosidade da morte, por enquanto, e aproveitemos o verão para pôr o riso em dia. Rir o meu riso, rir de mim própria – gosto disso.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_399
Nota
da autora: as expressões consideradas como lapalissadas, redundâncias e
pleonasmos foram deliberadamente escritas em itálico, uma vez que não tenho
tambor para batucar.
sexta-feira, 4 de agosto de 2023
ASSIMPTOTICAMENTE
De um exílio não se regressa, ele é a nossa terra
exausta, a
nossa palavra exausta, a nossa escrita exausta.
:
Um homem pobre nunca será um exilado:
encontrará em todos os caminhos
a devastação da sua intimidade.
Rui Nunes
Pormenor do Jardim da Alameda (Faro) por Adília César |
Vejamos. Para muita gente, as inevitáveis
férias chegaram (o mês de agosto devia escrever-se sempre com maiúscula, tal é
a enormidade da linha assimptota que o caracteriza). Inspiro profundamente até
ao fundo do mar. Volto atrás e leio o que acabei de escrever. Depois daquela
estranha afirmação entre parêntesis não me apetece dizer mais nada. Ultimamente,
os parêntesis ganharam novos contornos na minha vida, com nuances caóticas e
efervescentes, nem sempre por causa do calor. O planeta Terra entrou em fase de
ebulição e o meu espírito está em perfeita sintonia magmática, com pensamentos secos
e esfarelados que, depois do fogo, vão encobrindo algumas dúvidas existenciais
relacionadas com as alterações climáticas, a inteligência artificial, enfim, a
espuma de uma vida tão difícil de dissipar para tantas pessoas.
Vejamos. Proponho-me escrever uma crónica
(ou, na pior das hipóteses, uma não-crónica). Contudo, sei que um texto dessa
natureza – uma espécie de história contada de modo linear – deve conter um
número mínimo de palavras (sei lá, por exemplo, 700) e, assim, farei um esforço
para deixar registado algo interessante sobre a silly season (desculpem-me
o estrangeirismo, mas a tradução não funciona bem, tendo em conta as minhas
intenções narrativas).
Vejamos. Estive a ler… Bem, na verdade creio
que não vos interessa o que eu estive a ler. Nem sequer onde eu irei passar as
minhas férias. E muito menos interessará o que é que eu penso sobre o verão.
Mas as 700 palavras ainda estão longe e…
Vejamos. Recomecemos. Estive a ler o
último livro do escritor Rui Nunes, um autor que sigo há muito tempo. O homem
escreve de uma forma demolidora, em completa ruptura com as tradições
narrativas a que vou tendo acesso como leitora. Fascinante. A editora que
publicou a maioria dos seus livros – a Relógio D’Água – classifica-os na
categoria Poesia. Certo. “Neve, Cão e Lava” e as respectivas aproximações
assimptóticas, segundo o autor. Talvez poesia, sim.
Vejamos. Nesta crónica, definir se a obra
de Rui Nunes se encaixa numa categoria poética não é relevante, pois não
pretendo traçar um perfil do escritor em causa. Da epígrafe que seleccionei,
ressalta quase tudo o que me apraz dizer sobre o meu tema de eleição – o verão.
Estou de férias, mas não aprecio partilhar territórios veranis com os outros.
Sou uma espécie de exilada no meu próprio país, porque se me atrevo a sair
encontrarei, decerto, “em todos os caminhos, a devastação da sua [minha]
intimidade”. Deste modo, faço uma aproximação assimptota aos paraísos comuns
daquilo que se convenciona como sendo férias e refugiu-me nos meus paraísos
interiores: eu, tu, os pássaros que cantam junto à janela, a frescura do jardim
que ambos frequentamos diariamente, os livros e as percepções decorrentes de
todos os acontecimentos que parecem não se relacionar com o que acontece aos
outros. A terra exausta, a palavra exausta, a escrita exausta. Ou quase.
Vejamos. Ainda agora o tempo da
expectativa paradisíaca começou e já me sinto exausta… assimptoticamente,
aproximo-me das 700 palavras, mas…. o dicionário Priberam vem em meu auxílio e
vejo claramente “a linha recta que se dispõe em relação à ramificação infinita
de uma curva, de modo a que a distância de um ponto da curva a esta recta tende
para zero quando o ponto se afasta indefinidamente sobre a curva.”
Vejamos. É verão e o tempo ferve, o tempo
não pára de ferver. Derreteu a neve metafórica, definitivamente. Fez desaparecer
a frescura da manhã. Parece que o tempo tem pressa de viver, como os turistas. Assim
é o verão para mim: uma onda complexa, que não cabe, que não coincide, que não
se toca. Assimptota. Um calendário desfeito pelo calor da lava que não se vê,
mas que sabemos que está ali, a explodir durante o mês de agosto. O cão é
grande e negro, olha-nos confiante e deita-se na relva, a nossos pés. O tempo
parece ameno, aproximando-se em câmara lenta.
Vejamos. Será tudo isto apenas um sonho?
Respiro pesadamente e decido acordar do torpor quente da noite. Sorrio,
confiante como aquele cão que ainda está deitado sobre a relva, mas que eu já
não consigo alcançar na tela do horizonte. Afinal, é dos sonhos arriscados que
reza a história dos audazes. Na mesa de cabeceira, o livro do Rui Nunes é o que
é: um lugar onde o já e o ainda quase coincidem.
Finalmente, já atingi as 700 palavras! Pois
então, basta de intenções literárias por hoje. Amanhã ainda será agosto,
assimptoticamente falando. Sinto-me febril, tenho que me tratar. Escrever é uma
doença.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_398
terça-feira, 25 de julho de 2023
PERFIL - CASIMIRO DE BRITO
O Poeta do Amor
«Sou poeta, um vaso aberto a todas as
águas».
Casimiro de Brito,
in Catálogo da Exposição Entre Mil Águas: Vida Literária de Casimiro de Brito, I FLIQ
Casimiro de Brito - Site da Câmara Municipal de Loulé |
Foi no
contexto de festa da cultura - I Festival Literário Internacional de Querença
(agosto de 2016) – que conheci Casimiro de Brito, o autor homenageado. Vi um
homem jovial, comunicativo, atento aos pormenores e profundo conhecedor dos
diferentes cenários onde a Literatura se move – a escrita, a crítica, a
divulgação, o reconhecimento por parte dos outros. Vi a sua pose de poeta do
amor e da claridade. Ao mesmo tempo, tive a percepção de um homem simples,
demarcado das vaidades que poluem os guetos literários e possuidor de uma
apurada sensibilidade humana. E vi, sobretudo, a sua generosidade, ao dizer
tanto com tão poucas palavras. Por exemplo, sobre si próprio: «Biografia: amo e
escrevo.»
Assim,
é visível a intensidade das coisas belas, o amor, o erotismo, a mulher amada na
escrita de Casimiro de Brito. Deixo-vos, como exemplo, dois fragmentos do seu
livro “Flor Interior”, editado pela Eufeme em 2017:
4 Olho para a mulher como se tivesse sido
cego a vida inteira |
24 Não sei ler mas li as páginas do teu corpo de olhos fechados |
Também
Manuel Frias Martins o referencia como um dos «melhores executantes» de
literatura erótica, numa entrevista de 16 de agosto de 2021 ao JN:
no romance Uma Lágrima que Cega, por exemplo, «o erótico emerge de uma abordagem estética (e quase mística)
dos atos de amor e da paixão estimulada pelo corpo feminino, mas cujo arrebatamento
simultaneamente erótico e estilístico se reconhece em imagens» (…) da sua
escrita.
Casimiro de Brito é fascinante na sua interpretação
filosófica. Apresento alguns aforismos seus, do conjunto Pontos Luminosos,
publicados na revista Lógos-Biblioteca do Tempo Nº 8 (Maio de 2018):
«1. Do aforismo. Que seja o mais nu
possível.
4. Mas cuidado com as palavras: elas
ofuscam o silêncio onde se oculta a palavra que não é sequer música, apenas
respiração.
11. Não, não é possível prosseguir no
ofício do poema, no precário equilíbrio entre opacidade e transparência
("é característica do enigma a de dizer coisas reais através de
associações impossíveis", Aristóteles, Poética, 22) quando a música
me abandona, quando o pequeno animal de som que vem do fundo e banha de
ambiguidade as palavras cessam. Quando a música se afasta só o silêncio me
salva, o silêncio placentário que envolve cada palavra como se ela fosse um
bicho que vai nascer, florescer, ferir, esgotar-se e morrer.
19. E o pensamento? Será o pensamento,
como pretende Heidegger, “o poema original”? Poema e pensamento são traduções
da essência poética, sub-versões da verdade do ser; engendram-se na perdição da
voz, jamais na perdição da boca. O dizer original não é, pois, o primeiro verso
do poema, o incipit que tu colhes quando menos esperas: não é a palavra,
mas o desejo da palavra. Há quem lhe chame música ou paixão, mas para que essa
música se transforme em número é preciso que o desejo seja de-cifrado e a
paixão trabalhada com rigor. Só então o dictare original será desfeito
pela lei do poema.
24. O poeta, esse, está ferido e vai cair – ferido pelos desastres da História e da sua história vai regressar, mas ainda não chegou a hora de mergulhar nas águas mais íntimas do mundo; esse que ouviu a sombra, e teve a visão do canto, e vai criar a obra da palavra… vai enfim cair – o poeta que nomeou a unidade perdida vai-se apagar no poema que talvez dure mais do que um instante – e assim se romperá por momentos a separação, o fosso que separa o homem da esfera musical a que pertence – a música “secretissima, penetralia, cubilia” de que falava Santo Agostinho – essa esfera ou seio ou Unum Principale diante do qual o homem está sentado – o poeta que vai cair, apodrecer – expulso mais uma vez do paraíso para o seu longo e louco exílio.»
Numa entrevista concedida por Casimiro de
Brito à revista Lógos-Biblioteca do Tempo Nº 3 (Setembro de 2018) é evidente a
simplicidade, o despojamento em relação ao seu universo poético:
«Lógos – A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tem consciência da “utilidade” da sua poesia no mundo?
CB – Deixei escrito há dezenas de anos que o meu poema servirá, espero, a quem for tão pobre como eu. Pobre no sentido de despojado. E é curioso que, por vezes, ficamos mais ricos — e não será apenas o meu caso — com a aproximação do pouco. O mundo está cheio de “muito” e é preciso esvaziá-lo quanto possível.»
Casimiro de Brito é poeta, romancista, contista e ensaísta. Nasceu no Algarve (Loulé), a 14 de janeiro de 1938, onde estudou (depois em Londres) e viveu até 1968. Depois de uns anos na Alemanha passou a viver em Lisboa. Teve várias profissões, mas actualmente dedica-se exclusivamente à literatura. Começou a publicar em 1957 (Poemas da Solidão Imperfeita) e, desde então, publicou mais de 70 títulos. Dirigiu várias revistas literárias, entre elas "Cadernos do Meio-Dia" (com António Ramos Rosa), os Cadernos “Outubro/ Fevereiro/ Novembro” (com Gastão Cruz) e “Loreto 13” (órgão da Associação Portuguesa de Escritores). Actualmente é responsável pela colaboração portuguesa na revista internacional “Serta” e faz parte da direcção do Festival “Voix Vives” de Sète bem como da World Haiku Association, sediada em Tóquio. Esteve ligado ao movimento “Poesia 61”, um dos mais importantes da poesia portuguesa do século XX. Ganhou vários prémios literários, entre eles vários prémios nacionais, o Prémio Internacional Versilia, de Viareggio, para a “Melhor obra completa de poesia”, pela sua Ode & Ceia (1985), obra em que reuniu os seus primeiros dez livros de poesia. Colabora nas mais prestigiadas revistas de poesia e tem obras suas incluídas em 236 antologias, publicadas em vários países. Participou em inúmeros recitais, festivais de poesia, congressos de escritores, conferências, um pouco por todo o mundo. Foi director de festivais internacionais de poesia de Lisboa (Casa Fernando Pessoa), Porto Santo (Madeira) e Faro. Foi fundador e vice-presidente da Associação Portuguesa de Escritores, presidente da Association Européenne pour la Promotion de la Poésie, de Lovaina e foi fundador e presidente da direcção depois da Assembleia Geral do P.E.N. Clube Português. Obras suas foram gravadas para a Library of the Congress, de Washington. Foi agraciado pela Academia Brasileira de Filologia, do Rio de Janeiro, com a medalha Oskar Nobiling por serviços distintos no campo da literatura — entre outras distinções. A Académie Mondiale de Poésie (da Fundação Martin Luther King) galardoou-o em 2002 com o primeiro Prémio Internacional de Poesia Leopold Sédar Senghor, pela sua carreira literária. Ganhou o Prémio Europeu de Poesia Sibila Aleramo-Mario Luzi, com a sua antologia Libro delle Cadute, publicada em Itália em 2004, o prémio “Poeteka” na Albânia e o Prémio Mundial de Haikus da World Haiku Association. Tem traduzido poesia de várias línguas, sobretudo do japonês e foi traduzido para galego, espanhol, catalão, italiano, francês, corso, inglês, alemão, flamengo, holandês, sueco, polaco, esloveno, servo-croata, grego, romeno, búlgaro, húngaro, russo, árabe, hebreu, chinês, albanês, macedónio e japonês. Em 2006, foi nomeado Embaixador Mundial da Paz, no âmbito da Embaixada Mundial da Paz, sediada em Genebra. Foi também agraciado com a Ordem do Infante D. Henrique pela Presidência da República (Portugal). Últimas obras editadas: Livro das Quedas, Arte de Bem Morrer, Amar a Vida Inteira, Amo Agora / Amo Sempre (com a cantora argentina Marina Cedro), Eros Mínimo, Aimer Toute la Vie (em Paris), Apoteose das Pequenas Coisas, Flor Interior, Música Nua, Uma Lágrima que Cega, Alfa & Ómega – Breve Dicionário Pessoal, Cerimónia Amorosa, Euforia, Livro de Eros ou As Teias do Desejo, Amor Nu (Livro de Eros, II), No Amor Tudo se Move e Regresso à Ilha.
É preciso revisitar Casimiro de Brito, o homem e o escritor. Depois de termos esvaziado o mundo do supérfluo, a sua obra permanecerá a ecoar no tempo.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_383